A história de um apelido infeliz e de um “bullying” coletivo
João Carlos Pereira
A primeira vez que a vi foi num final de tarde, em 1968, ou, talvez, 1969. Eu era um menino e voltava da Capela de Nossa Senhora de Lourdes, depois de aliviar minha alma, até então coberta de lodosos pecados, para que pudesse fazer a Primeira Comunhão, no dia seguinte. Nem sei que mentiras inventei ao padre-confessor, a fim que pudesse me considerar puro. Acho que mais menti do que confessei. Ou melhor, confessei mentiras. Passei e repassei os 10 mandamentos da lei de Deus e não achei motivo de tropeços em minha pouca caminhada. Mesmo assim, tinha de me confessar. O quê, não sei.
Eu retornava para casa, a pé, acompanhado de minha mãe. Vinha duro, rijo, nem olhava para o lado, apavorado com a possibilidade de pecar e, assim, inviabilizar minha Comunhão inicial, o que me levaria ao inferno. Desejava ter saído do confessionário dentro de uma ambulância e largado em casa, onde estaria protegido de todos os males, amém. Como não foi possível, o jeito era enfrentar os quarteirões que separavam a Capela de nossa casa. Fugir da vida nunca resolveu problema de ninguém. Na esquina de Nazaré com a Generalíssimo, ela apareceu. Do nada. De repente.
Naquele cruzamento encontravam-se alunos de várias escolas, rapazes e moças para os quais a vida era feita de risos, deboches e alguma crueldade. No instante em que a professora Graziela surgiu, arrastando seus sapatos, começou a algazarra: “arara!” “arara!”, “arara!”.
Os berros vinham de todos os lados. Os demônios se escondiam atrás das árvores ou dos postes e se danavam a chamá-la pelo infeliz apelido, nascido da semelhança de seu nariz com o bico de uma arara. A professora Graziela se transformou na arara do desafeto coletivo. Defendia-se da ofensa, usando as únicas formas a seu alcance: dava sombrinhadas, atirava as pedras que conseguia recolher da calçada ou desfiando uma interminável série de palavrões, dos mais cabeludos aos mais simples. Começava com bando de filhos da puta e terminava com xingamento mais brandos, tipo burros, analfabetos, malditos.
Exasperada, movia-se como se fosse a própria metralhadora giratória. Tinha de devolver as agressões a cada um dos agressores. A cena não era de longa duração, mas o suficiente para enlamear uma alminha pura, decente como a minha, na qual Jesus viria habitar em menos de 24 horas. Minha mãe dizia: “tá vendo? Isso não se faz. E tu vais fazer Primeira Comunhão”. Era a educação pelo medo, aliada ao catecismo da culpa. Deu no que deu. Eu não sabia o que era que não se fazia: se perturbar uma pobre mulher, ou o retorno que a afronta merecia. Desconfio que as duas coisas. Enquanto caminhávamos, a mamãe repetia: “não olha, não olha”. Os filhos da puta se multiplicavam como eco nos meus ouvidos purificados. A pobre mulher não tinha um minuto de sossego. Nem eu.
Por muitos anos não a vi, até que reencontrei-a na rua, acompanhada da filha e do neto. Estava bem mais velha. A filha, Severa, trazia os cabelos tingidos de um loiro desbotado, cobria o rosto para mostrar vergonha pelo destempero materno, enquanto corria atrás do menino que as acompanhava. Tratava-se Francisco Canindé, uma criança muito branca, de pernas compridas, cabelinho liso, cara sempre assustada, que entrava no ônibus, botava a cabeça pra fora, batia na carroceria externa e desfiava outra série de filhos da puta, fazendo nome no dedo. Que sina, meu Deus!
Em muitas e muitas ocasiões encontrei a professora Graziela e sua família perambulando pelas ruas e pela Praça da República. Ela estava cada vez mais corcunda, mas nunca a vi desarrumada. A filha, a quem chamavam de ararinha, pintava o rosto de forma exagerada e o menino,apelidado de periquito, já parecia um rapaz. Se a provocassem, desancava sobre a filha. “Severa, puta, vem cá… puta, puta, puta”. Havendo plateia, acusava a pobre de prostituta e contava que se deitava com os homens por dinheiro. Era um disco arranhado: “puta,puta,puta,puta….” A pobre se encolhia de vergonha.
Sempre tive muita curiosidade de saber mais sobre a família que padeceu nas mãos desta terra um tanto desalmada. Penso que nunca foi entrevistada ou que ninguém jamais cuidou de desenhar-lhe o retrato, ainda que fosse um breve esboço, como este que agora preparo, com a ajuda de pessoas que conviveram com ela.
Sebastião Godinho me ofereceu a foto que ilustra a capa da crônica. Bernardino Santos me contou que esteve muito próximo a ela e sempre a tratou com respeito. Chamava-na de professora. “Bom dia, professora, boa tarde, professora”. Por conta dessa deferência, soube que a professora Graziela Pimentel o considerava o homem mais bonito, elegante e educado de Belém. Não podia ser diferente. Ela freqüentava a casa de uma tia do jornalista e foi lá que se conheceram. Quando começou a trabalhar na Prefeitura, Bernardino a via perambulando pelos espaços internos e gabinetes do Palácio Azul, o “Antônio Lemos”. Aposentada precocemente, tinha todo o tempo do mundo para tentar visitar as autoridades. Ou mesmo nada a fazer.
No Palácio, colecionava antipatias e brigas. Havia um capitão (ou seria coronel) dos Bombeiros, que implicava com sua presença. A implicância era recíproca. Se alguém se escondia atrás de uma porta e gritava o apelido, coitado de quem passasse naquela hora. Escutava os impropérios, sem nada ter feito.
Uma vez, arrumou desavença com uma senhora que trabalhava lá. Toda vez que a via, choviam palavrões. Não sei de onde tirou a idéia de que a mulher era amante de D. Angelo Rivato, o bispo do Marajó. Mal a criatura riscava na porta do Palácio, fazia a mesma denúncia. Chateada, a servidora fugia da professora, saindo pela porta do fundo. Quando os taxistas descobriram, avisaram-lhe que a fulana, a suposta amante do Bispo, evadia-se por outro caminho. Esperta, deixava a filha numa entrada e ia para a outra. Os taxistas, mancomunados com os guardas, queriam mesmo era ver o circo pegar fogo. A servidora perguntava se a “arara” estava por ali e todos diziam quem não, apenas a filha havia ido dar “expediente”. Era mentira. A professora a aguardava de sombrinha em punho e, assim que colocava a cara na rua, era lembrada, publicamente, de seu “caso amoroso” com D. Ângelo. Esse inferno durou muito tempo.
De Édson Salame escutei outra parte da história. Tratava-se de uma senhora distinta, casada com um médico, o Dr. Pimentel. Era impossível continuar vivendo com uma criatura que perdeu a razão e precisou ser aposentada por invalidez. Cada um foi para o seu lado. Ele constituiu outra família e ela ficou nas ruas. Não na rua da amargura, porque recebia aposentadoria integral e, pelo visto, não era pouca coisa. Andava sempre muito arrumada, penteada, com colares e bolsas combinando. Morava num hotelzinho e comia nos restaurantes populares da área do comércio. O resto do dia passava entre o Palácio do Governo, o Tribunal de Justiça e a Prefeitura. Fazendo o quê? Coisa nenhuma.

Cansada de tanto ser chamada de “arara”, pediu uma audiência ao governador Jarbas Passarinho. O objetivo era conseguir dele um decreto, que proibisse as pessoas de berrar seu apelido. O distintíssimo e bem-humorado JP a recebeu carinhosamente em seu gabinete e ouvi a súplica. Sem conseguir convencê-la de que o decreto seria inútil, procurou consolá-la. “Minha professora Graziela, a senhora sabe que o povo todo me chama de Passarinho, não sabe? Eu não ligo a mínima. Faça como eu, não ligue. Afinal, a senhora é arara e arara é mais que passarinho. Não se aborreça com isso”. Não sabe a reação da pobre criatura a quem a ninguém respeitava a falta de saúde mental.
De Linomar Bahia só ouvi coisas bonitas a seu respeito. “Era uma mulher elegante, fina, culta, falava e escrevia muito bem”, descreveu o jornalista. “A letra da professora Graziela era tão bonita, que parecia a de um calígrafo. Sua cultura geral era ampla, tanto que ensinava português, matemática, história, geografia e ciências”. O que a tirou do eixo, ignora-se. Igualmente desconhece-se o que alterou a vida da filha, que foi casada com um oficial da Marinha. “Ela era uma mulher corretíssima, educada”, definiu Bahia. Como ficou daquele jeito, só Deus poderá dizer. A doença consumiu sua paz e abafou seus talentos, inclusive o de pianista.
Cada vez mais curvada, com o nariz parecendo bem maior, andava com o contra-cheque na bolsa e, se alguém viesse puxar conversa, exibia o documento. Eu mesmo o tive em mãos. Nunca a encontrei desleixada ou suja. Pelo contrário. Sempre arrumada, saia, blusa para dentro, roupa de boa qualidade. Quando começou a receber a pensão do ex-marido, a vida melhorou. Abandonou a comidinha caseira e barata dos restaurantes do comércio e passou a fazer as refeições no antigo hotel Hilton, onde possuía mesa cativa e pagava as contas de forma correta. “Ela, a filha e o neto chegavam e iam para uma mesa bem no fundo. Ninguém mexia com eles. Lá conseguiam ter sossego e respeito”, lembra o Bernardino, que, nessa época, freqüentava o Clube do Açaí, uma agremiação de jornalistas e pessoas de projeção social, comandada pela professora Elanir Gomes da Silva, a Lana.
A professora Graziela já morreu. Quando? Não imagino. A filha, Severa, ainda vejo de quando em quando, na missa da Basílica. Ela pisca os olhos, beija as pontas dos dedos e faz um adeuzinho sapeca, me olhando por cima do ombro. Acho que faz isso com todo mundo que lhe dá trela. O cabelo está mais desbotado do que no passado. Nunca assiste à missa por inteiro. Fala sozinha, conversa com Nossa Senhora, se ajoelha e parte. Quanto ao neto, uma vez me escreveu um e-mail lindo, agradecendo a forma generosa como tratei sua avó. Ocupava, à época, o cargo de secretário de Cultura de um município do interior e se tornara escritor, com obra premiada e tudo. Gostaria de ter contato novamente com ele.
Belém foi muito má para com essa pobre senhora que, a rigor, nunca fez mal a ninguém. Descontando as implicâncias, que surgiam apenas contra que a agredia, e o fato de haver revelado (ou inventado) que a mulher era amante de D. Ângelo, nada se tem a dizer contra ela. Na verdade, se há alguma coisa a ser dita é uma palavra de perdão, pelo tanto que se fez contra uma criaturinha, cujo único defeito era o tamanho do nariz. Hoje, uma plástica resolveria o problema. Mas cirurgia alguma removeria de sua alma as cicatrizes que a “brincadeira” idiota colocou-lhe na alma.
Desculpe, professora Graziela. Esta cidade, quando quer, sabe ser cruel.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Oswaldo Goeldi — Sonâmbula, s.d. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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