A freira que conhecia os mistérios da terra e dos homens

João Carlos Pereira

Panoramix era um druida. O maior druida de toda a Gália. Viveu meio século antes de Jesus, na única aldeia que os romanos não conseguiram dominar. Era frágil e, por trás de uma imensa barba branca, de um nariz enorme, de uns pés gigantescos e da pequena foice que trazia presa à cintura havia um sábio. Sua maior especialidade era preparar uma poção mágica, feita à base de zimbro, uma pequena erva que apenas ele conhecia. Foi grande amigo e conselheiro de Asterix, o gaulês, cuja maior diversão, depois de caçar javalis, era espancar exércitos romanos. Sua poção secreta gerava uma força extraordinária aos gauleses, que se tornaram invencíveis graças a ela.

Panoramix nunca existiu. Asterix também não. Seu amigo Obelix, quando criança, caiu no caldeirão da poção e se tornou mais forte que o Super Homem, era igualmente personagem de ficção. Panoramix é mais novo que eu pouquinha coisa. Veio ao mundo em outubro de 1959 e eu nasci em agosto do mesmo ano. É personagem de uma deliciosa história em quadrinhos, na qual que os mais fracos vencem os mais fortes. Sempre. Toda vez que olho para ele, me lembro de uma senhora tão druida como ele. A diferença é que a criatura é de carne e osso e criou poções até mais poderosas. Seu nome é Maria Hélia de Jesus, uma freira branquíssima, super do bem, alegre, risonha, que andava saltitando e sumiu de meus olhos, mas não do meu coração. Por isso está aqui, nesta galeria de pessoas queridas.

Nos conhecemos há mais de 20 anos, bem mais, talvez, quando eu apresentava um programa matinal, na Rádio Nazaré. Ela coordenava a Pastoral da Saúde e produzia poções que curavam qualquer doença. Quando não curavam, impediam que avançassem. Numa época em que o AZT não existia e portadores do vírus da Aids eram segregados tal como os leprosos, nos tempos bíblicos, ela mantinha a saúde e a vida normal de cinco rapazes soropositivos. Os poderes do druida gaulês perto dos dela eram de fazer rir.

Não sei a que ordem religiosa pertencia. Usava uma saía branca e uma batinha da mesma cor. Cobria a cabeça com um véu que deixava à mostra parte de seus cabelos brancos. As mãos estavam calejadas pelo trato com a terra. O sotaque era meio mineiro e falava cantando. Chegava todos os dias a bordo de seu Lada vermelho, razoavelmente bem conservado e estacionava onde houvesse vaga, independente de estar reservada ou não. Normalmente escolhia a privativa do Arcebispo. Não sei se para provocar, porque era de natureza anárquica, ou se por leseira mesmo. Às vezes os dois chegavam juntos e ela estacionava primeiro. Avisada, olhava para D. Vicente, com a maior cara de santa, e dizia: “Ah! De novo… Me desculpe, Dom”.

Por causa de sua participação no meu programa, ficamos amigos. Tão amigos que eu me permitia tirar umas graças, do tipo: “irmã, a senhora sabe a diferença entre a Aids e o seu carro”? A primeira vez ela ficou assustada. Pensou, pensou, pensou e entregou os pontos: “eu não. E tem?” Ai eu entrava com a piadinha ridícula: é que a Aids dá para passar em frente. Seu carro, não”. Ela ria dessas bobagens.

Com o tempo, passei a freqüentar a salinha da Pastoral e comecei a ajudar na preparação de alguns remédios. Um deles era feito à base de cevada e de umas gotinhas de creolina. Segundo ela, não havia vermífugo mais eficiente. Com um mato chamado Vassourinha, manipulava uma pomada para dor que não conheci melhor. Fazia remédio para tudo. Para combater qualquer mal, conhecida uma casca, uma folha, uma raiz, um mato, uma banha, o que fosse. A natureza era sua grande farmácia.

Quando saiu a concessão da TV Nazaré, houve necessidade de levantar a antena. A hortinha da irmã Hélia ficava exatamente no lugar do projeto. Nesse dia, pela primeira vez, ao logo de nossa amizade, eu a vi meio cabisbaixa. Preocupado, dividi o problema com os ouvintes. Antes que o programa terminasse, estavam à sua disposição três terrenos, um deles, enorme, em Icoaraci. A freira agradeceu, e justificou a recusa, alegando a distância. Para os pobres a quem trabalhava eram de difícil acesso. Muitos precisariam tomar dois ônibus para chegar. De repente, apareceu uma casa na Marquês de Herval, tal como sonhava.

Ninguém me pergunte onde arrumou dinheiro para comprar o imóvel porque não sei. Mas com nossa druida aconteciam coisas inexplicáveis. A casa ficava perto da Unama e foi construída no centro de um terreno enorme. No local, funcionava um terreiro de umbanda. A freira achou ótimo e, no lugar onde estava o congá, espaço de maior concentração energética do templo, instalou uma capela. “Podia ter lugar melhor?”, me perguntou, no dia em que fui visitá-la.

Irmã Hélia possuía uma forma absolutamente inusual para diagnosticar enfermidades. Usava um pêndulo e nunca, até onde eu sei, errou uma receita ou matou alguém. Os rapazes com HIV viviam de forma tão tranquila, que nem pareciam condenados à morte, como se acreditava naqueles anos. Vale lembrar que isso aconteceu antes da descoberta dos coquetéis e do AZT. Um soropositivo estava sentenciado. Menos os meninos da irmã Hélia.

Uma vez, apareceu com uma conversa que me parecia maluca: beber a própria urina. Protegida com estudos sobre “urinoterapia”, ela prescrevia copos de xixi ainda quente para curar algumas enfermidades. Eu achava aquilo nojento, mas a base científica (ou quase) que exibia eliminava qualquer possibilidade de dúvida. Quando precisei operar o coração para implantar pontes de safena, me receitou uma mistura de mel, uísque e cebola. Infelizmente o caso era sério demais e as artérias estavam muito entupidas. Tivesse me submetido ao pêndulo, era capaz de não ter a cicatriz enorme no meio do peito.

Quando ela se mudou para o novo endereço, perdia-a de vista. Um dia, eu caminhava no calçadão do Museu, quando vi um carro vermelho parar no meio da pista e dele descer uma freira apressada. Enquanto me abraçava e pedia que fosse visitá-la, os motoristas enlouqueciam, buzinando desesperadamente. Irmã Hélia não estava nem aí para eles. Entrou no veículo, deu adeus e foi embora, indiferente à confusão que causou.

Penso nela com ternura e com saudade. A criaturinha só se preocupava com os pobres. Seus clientes, digamos assim, eram os que não podiam sequer entrar numa farmácia. Tudo que produzia custava baratinho, tipo um Real, dois, no máximo.

Nunca mais soube de minha amiga. Hoje deve ser uma senhora com mais de 80 anos e duvido que tenha perdido a alegria. A druidazinha querida, de quem não tenho uma foto sequer para desenhar a capa desta crônica, conhecia os segredos da floresta e o poder da energia de que todos nos estamos envolvidos. Espero, sinceramente, que um bom vento leve estas páginas até ela e as depositem em suas mãos, com o mesmo carinho com que as escrevi.

Um beijo, minha amada irmã Maria Hélia de Jesus. Preciso dizer muito obrigado mais do que especial pelo tanto que, entre sorrisos, me ensinou sobre a vida, o amor aos pobres e o bem viver? Todas as palavras desta crônica, as vírgulas e os acentos fizeram isso por mim, com aval de meu coração cheio de saudade.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Lasar Segall — Vaso branco, 1935. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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