Mario Cuia: o eterno Rei Momo dos brasileiros

João Carlos Pereira

É quase certo que o mesmo anjo torto, o anunciador e fazedor de destino, desenhador dos passos à esquerda de Carlos Drummond de Andrade desde a maternidade, tenha, por descuido, erro de rota, passado por Belém, no dia 12 de dezembro de 1931, e feito outra previsão certeira. Ao olhar para o bebê Mário Alberto Valério Coelho, fez pequena variação na velha fórmula do antever e alterou a palavra francesa “gauche” e proclamou: vai, Mario, ser gordo na vida.

Antes de completar 15 anos, já havia passado dos 110 quilos, mesmo praticando esportes. A família se preocupava. O pai o mandou para São Paulo, em busca de tratamento para emagrecer. Chegou a perder entre 20 e 30 quilos, um nada para um homem que media 1m90. Um dia, meteu-se numa confusão no pátio do Colégio Moderno e um desafeto perguntou: “quem é essa cara que parece uma cuia?”. Mário Alberto não gosto e partiu para cima. Como a melhor forma de fazer um apelido grudar na pele do apelidado é reagir, não houve jeito. Naquele instante, nasceu o Mário “Cuia”. Ou, simplesmente, o “Cuia”.

Com o tempo, cada vez mais sua cintura se alargava, dando consistência ao apelido. Sem alternativa, deixou de se importar com a brincadeira e, aos 26 anos, casou. A relação durou pouco. Segundo o costume da época, o filho do casal desfeito iria, naturalmente, para os cuidados da mãe. Mário e o filho, Waldemar, que me passou todas as informações deste texto, eram de tal forma apaixonados, que não podiam viver separados. Ao receber a notificação do Oficial de Justiça para entregar a criança, sacou do revólver e ameaçou: “eu atiro nele e depois me mato. Mas sem o meu filho eu não fico”. O agente da lei ficou tão apavorado, que correu para o Juiz. Nova audiência foi marcada e o magistrado alterou a sentença: “ninguém ama mais esse menino do que o pai. Ele permanece com o pai”, determinou. Nem Tim Maia, especialista em gestos extremados por amor, teria protagonizado uma cena mais comovente.

Mário se formou em Serviço Social e jamais exerceu a profissão. Seu mundo era o do comércio. Podia ser visto, todos os dias, distribuindo simpatia, na porta do número 100, da rua “João Alfredo”, onde funcionava a loja “Mundo Elegante”, de seu pai. Nos altos do prédio, estava instalado um dos mais movimentados consultórios dentários da cidade: o do doutor Flexa Ribeiro.

Além de Waldemar, Mário ainda teve mais dois filhos, Dilma e Fernando. A segunda esposa era uma moça novinha e magrinha. Pesava 49 quilos. Quando estavam juntos, podia-se ler a saudação OI. Ele era a letra O e ela, a I. Waldemar fala dessa senhora com uma certa piedade. “Imagina…49 quilos. E o papai daquele tamanho”

O tamanho de Mário Cuia não chegava nem perto à dimensão da bondade de seu coração, que era infinitamente maior. Morador da Praça Amazonas, numa linda casa onde, ainda hoje, funciona uma academia, ele olhava para o Presídio São José e sentia pena dos homens ali confinados. Depois de missa dominical, ia ao Ver-o-Peso comprar pacotes de cigarro, pasta e escova de dentes, sabonete, mais o que podia faltar aos detentos, e ia pessoalmente entregar. Assim fez amizade com muitos apenados. Depois de ouvir-lhes as histórias, contratava advogado e conseguia a liberdade. Provavelmente, foi quem mais soltou presos nesta terra, sem receber honorários por isso.

Visitar presos que nunca havia visto antes era um programa rotineiro de domingo. Os que ganhavam a liberdade sabiam ser gratos. Sua casa jamais foi assaltada. A loja no Comércio, numa época em que a bandidagem comia solta em Belém, nunca foi invadida. Uma vez, um meliante tentava estourar o cadeado para entrar na casa de Mário, quando outro ladrão passou e avisou: “ei, saí daí. Nessa casa ninguém mexe. O dono é nosso amigo”.

Se domingo era dia de visitar os presos, o sábado ficava reservado às idas ao leprosário. O primeiro contato era um compadre, que o acompanhava ao pavilhão dos mutilados. Sem medo de ser contaminado pelo mal Hansen, era carinhoso com os doentes que ninguém queria ver. Primeiro, porque a lepra ainda era tabu. Depois, a aparência deles era terrível. Criaturas desfiguradas, literalmente caindo aos pedaços, meladas da gosma produzida pela doença. Chagas abertas, mau cheiro, panos sujos protegendo as carnes apodrecidas. Mario lá ligava para isso? Anotava as necessidades de cada um e, na semana seguinte, retornava, com sua imensa simpatia, para aplacar a dor dos esquecidos.

A alma boníssima de Mário “Cuia” revelava um homem religioso, profundamente sintonizado com o sagrado. Era católico que, como muitos, de dia, rezava na missa e, à noite, frequentava o Espiritismo. Ia muito à tenda Miry “ Santo Expedito”, de linha umbandista. Uma vez por ano, no dia de seu aniversário, e apenas nessa data, incorporava. Sem plateia, reservado, em casa, recebia Pretos Velhos, Caboclos e o espírito de sua mãe.

Quando 1966 chegou, o “Cuia” já era uma celebridade municipal. Sua lambreta havia se transformado num ícone, logo substituída por três rurais e uma veraneio, que comprou do senhor Vitório Bisi. O negócio foi fechado rapidamente. Não era um simples acordo comercial. Parecia a realização do sonho de possuir uma Veraneio. Nesses carros, transportava leite, queijo e manteiga, produzidos pela Coleipa, e vendia para bares, restaurantes e hotéis. Um desentendimento com o pai o levou a montar o próprio ganha-pão.

Nessa época, Belém era administrada por Oswaldo Mello. Jarbas Passarinho governava o Estado. Como a cidade não tinha um Rei Momo, Mello o escolheu para representar o Pará num encontro nacional de Reis Momos, realizado na cidade de Santos. A enorme simpatia, o peso descomunal, o fato de ser o único Momo com curso superior e possuir uma condição financeira confortável, embora não fosse propriamente um homem rico, fizeram dele o “Rei Momo do Brasil”.

Mesmo com quase 250 quilos, possuía uma elasticidade impressionante. Na juventude, praticou esportes e era capaz de se abaixar para apanhar uma chave no chão. Por isso dançava como poucos. As Revistas “Manchete” e o “Cruzeiro” o entrevistaram muitas vezes. Constantemente era convidado para participar dos programas do Chacrinha e do “Clube dos Artistas”, com Airton e Lolita Rodrigues.

Tanta popularidade rendeu convites de Jarbas Passarinho e de Alacid Nunes, ambos da Arena, para se filiar ao partido e concorrer a uma vaga na Câmara Municipal. Naqueles tristes anos pós-64, todo voto que caísse na urna contava para a legenda e aumentava o capital político do governo. Eleito ou não, o candidato ajudava, com seus votinhos, a manter o regime. Mario jamais aceitou. Tinha medo de que a caridade que praticava silenciosamente fosse vista como oportunismo, como trampolim para a política.

Sem alegre e risonho, com talento para o humor, poderia ter se tornado uma atração nacional, para além do carnaval. Em Belém, participava de uma espécie de “Escolhinha”, na TV Marajoara, com Armando Pinho e Kzan Lourenço, entre outros artistas da terra. Zé Trindade fez o possível e o impossível para levá-lo daqui. Juca Chaves e José Vasconcelos ofereceram mundos e fundos, abriram todas as portas da fama, mas ele gostava mesmo era de Belém. A voz de “barítono” ajudava a compor personagens. A presença em cena, também. Se tivesse desejado, seu nome estaria escrito na história da televisão brasileira. Wilza Carla, vedete e igualmente gorda, ocupou o lugar a ele destinado.

Como soberano da capital, desfilava sobre um caminhão do GuaraSuco, o patrocinador de suas atividades momescas. No dia 31 de dezembro, puxava o primeiro grito de carnaval e, quando fevereiro chegava, sentava em seu trono móvel para animar, nos finais de semana, a folia.

O homem que tinha um apetite de lobo, possuía alma de criança. Era bom e puro. Se possuía um pecado grave, era o da gula. Não havia prato que rejeitasse. Podia comer vários galetos na mesma refeição. Misturava miolo de boi com ovo e mandava ver. Fazia churrasco de rim bovino, a partir de uma técnica que descobriu para acabar com o cheiro de urina. Mergulhava a víscera numa água muito gelada. Isso liberava a película impregnada do mau odor.

Uma vez, quando eu era criança, o vi chegar à já inexistente Casa Amazônia, na esquina da Gentil com a Generalíssimo. Aquele homem imenso me assustava. Ele fez um lanche reforçado. Na saída, pegou uma caixa de passas secas e engoliu a porção de uma só vez.

Para quem comia desbragadamente, não havia roupa que coubesse. Tamanho GGG não entrava. Talvez nem existisse. Um alfaiate, no bairro do Acampamento (será que ainda existe esse lugar com oi mesmo nome?) costurava-lhe as calças e as camisas. De cliente passou a ser amigo, depois, virou compadre do homem que o vestia. Os sapatos também eram preparados sob encomenda. Não por causa do tamanho, 44, mas pela altura. O pé, gordo demais, não entrava em nenhuma forma convencional.

O ex-goleiro do time do Colégio Moderno e ex-jogador de basquete, do Paysandu, não fumava, nem bebia. Ia para as festas de carnaval com a cara limpa e assim saía. Menos mal. As artérias, porém, seguiam sobrecarregadas de gordura. Em 73, a morte mandou um primeiro aviso através de um infarto violento. Recuperado, continuou engordando. No dia de seu santo protetor, São José, 19 de março de 1975, o coração não suportou a carga e parou de trabalhar. Mario pesava 242 quilos. Contava apenas 43 anos.

O seu enterro foi tão espetaculoso como as entradas nos desfiles de carnaval. A mesma Prefeitura que bancava suas fantasias de Rei Momo, assumiu o funeral. O prefeito era Octávio Cascaes contratou carpinteiros para construir um caixão em que coubesse um corpo com quase ¼ de tonelada. O cortejo fúnebre só não foi maior do que o do lendário governador Magalhães Barata, até hoje comparado a um Círio.

O povo não permitiu que seu Rei Momo fosse levado ao cemitério sobre um carro qualquer. Populares colocaram a urna sobre maca emprestada à Beneficente Portuguesa e empurraram o veículo de uso hospitalar pelas ruas de Belém. Em frente à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, houve uma pausa. Os sinos executaram o dobre de finados. Aos poucos, milhares de pessoas conduziram o corpo de Mário “Cuia” até o cemitério de Santa Isabel, no bairro do Guamá. Havia tanta gente, que o filho, Waldemar, não conseguiu assistir ao sepultamento. Ficou atrás da multidão, amparado pelo primo Fabiano Coelho.

Em Santa Isabel, só não aconteceu uma tragédia porque Deus cuidou de tudo e o falecido era protegido de São José. As pessoas avançaram por sobre os túmulos que estavam no caminho e arruinaram muitos deles. Se aos mortos é consentida visão da vida, Mário Alberto Valério Coelho pode ver, mais uma vez, o quanto era amado pelos seus súditos.

Consta que, nesse dia, houve uma tremenda festa no céu, com a comilança liberada e bastante carnaval. Afinal, para Mário “Cuia”, a recepção só poderia ser desse jeito.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Cícero Dias (1907-2003) — Melancia, déc. 1940.

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