Mário “Cuia”, Chico Buarque e uma história contada por Zeno Veloso

João Carlos Pereira

Mario Quintana, o meu Quintana, tem um poema de que eu gosto de maneira especial. Chama-se “Noturno Arrabaleiro” e é assim:

Os grilos…os grilos… Meus Deus, se a gente
Pudesse
Puxar
Por uma
Perna
Um só
Grilo,
Se desfiariam todas as estrelas!

Adoro essa imagem de puxar a perna de um grilo para desfiar estrelas. Vivo em Belém e, como diria o Drummond, referindo-se  à sua Itabira, principalmente nasci em Belém. Por isso sei que aqui basta alguém começar a contar uma história, para que se puxe a perna de um grilo e, em vez de desfiar todas as estrelas, se acionem mecanismos da memória e surjam história maravilhosas, nascidas de novelos diferentes.

Como num tricô de conversas, a partir da perna puxada do grilo-falante, bastou que falasse de Mário “Cuia” para que muita gente acrescentasse um ponto à história. De tudo que ouvi, os pontos revelados por Zeno Veloso ajudaram a compor um novo cenário para, mais uma vez, colocar em relevo a figura do muito amado Rei Momo, o primeiro e único Mário “Cuia”.

O ano era 1967 e a Faculdade de Direito do Pará fervilhava. A Associação “Camilo Montenegro Duarte”, que reunia alguns dos mais brilhantes cérebros da primeira geração que estudou a ciência do Direito sob os olhos atentos do regime militar, era dirigida por Resenildo Franco. Como não há aluno que ingresse no curso superior, sem sonhar com a festa de colação de grau, os futuros advogados dividiam o tempo entre os livros e os preparativos para a formatura. Para isso era preciso dinheiro e a Associação estava de caixa baixo para garantir a festança. A solução encontrada para salvar a lavoura era organizar um festival de música e trazer um grande nome de fora para fazer o show e faturar.

O I festival Paraense de Música virou um sucesso. Mais de 100 canções foram inscritas. O júri, formado por Billy Blanco, Waldemar Henrique, Nivaldo Santiago, Gilberto Chaves, Pedro Galvão de Lima, Rosenildo Franco e Isidoro Alves, deveria escolher as 15 melhores. Aos melhores seria dado o prêmio Uirapuru de Ouro, mais passagens aéreas para o Rio de Janeiro e a chance de gravar compacto pela Companhia Brasileira de Discos. Paulo André Barata foi o primeiro colocado com uma música linda, que evocava a quarta-feira de cinzas. De Campos Ribeiro conquistou o segundo lugar e muita gente achou o resultado injusto. Um jovem chamado Simão Robson Jatene, que viria a governar o Pará por doze anos, amargou o quarto lugar.

Mesmo com o clima de Festival, Billy Blanco ficou meio chateado. Imaginava que seria convidado para cantar, mas acabou apenas presidindo o júri. Um dos organizadores do evento me disse que o problema aconteceu por falta de comunicação. Como se tratava do grande Billy Blanco, os meninos sentiram vergonha de pedir uma apresentação, porque já consideram um grande favor tê-lo na comissão. Cantar, então, seria abusar de sua generosidade.

O hit do momento era a “A Banda”, de Chico Buarque. Apresentada no Festival da TV Record, conquistou o Brasil com tanta rapidez que, numa época em que só se via pirataria nos filmes, em quatro dias foram vendidas 55 mil cópias do disco e rendeu a seu autor, o próprio Chico, nada menos do que seis mil e oitocentos dólares. A solução estava encontrada. Chico seria a solução da lavoura.

As negociações foram feitas com o empresário Roberto Colossi, responsável pela agenda do artista, que, na época, era o dono do par de olhos verdes mais preciosos do país. Colossi se empenhou especialmente para vir a Belém por uma única razão: precisava conhecer o Mário “Cuia”.

O empresário, que talvez fosse o pai, ou tio, daquela a quem Jô Soares considera seu anjo da guarda, se tinha na conta do homem mais gordo do Brasil. Como a fama do nosso “Cuia” atravessou a planície e chegou ao chamado “sul maravilha”, na verdade, sudeste, ele precisava ver se o Rei Momo do Brasil era, de fato, mais gordo do que ele. O convite dos acadêmicos juntava a fome com a vontade de comer de um dos maiores comilões do Brasil, ávido para conhecer o que seria seu maior rival na pantagruelice.

O show do Chico estava marcado para acontecer na noite de 7 de setembro, no ginásio “Serra Freire”, do Clube do Remo. Uma das poucas exigências do artista era que Colossi viesse com ele. A Rádio Marajoara patrocinava o evento, a Cruzeiro do Sul daria as passagens e o hotel Grão-Pará forneceria a hospedagem. O cachê viria da venda dos ingressos.

Num excesso de amadorismo, a Cruzeiro emitiu o bilhete em nome de Chico Buarque de Holanda. Essa pessoa, juridicamente, não existia. Chico era Francisco e não haveria como embarcar. Dos problemas, o menor. A questão é que só chegou uma passagem e Chico, ou Francisco, havia pedido duas. Ou o Colossi iria, ou não haveria show. O amadorismo persistiu e a empresa continuou mandando mal. As passagens saíram em nome de Francisco Buarque de Holanda I e Francisco Buarque de Holanda II. Deu para entender a maluquice? Colossi virou Buarque II. E viajou assim mesmo.

O público foi informado da transferência para 14 de setembro. Algo me diz que ninguém prestou atenção no calendário e não reparou no feriado nacional da Independência. Com a ajuda da Rádio Marajoara, a cidade ficou sabendo da mudança de datas. Sem zap, tudo era mais difícil.

Chico Buarque chegou a Belém na véspera do evento e foi recebido, no aeroporto, por Zeno Veloso, Carlos Ferro e Silva, Sérgio Couto e Ali Jezine, que o levaram para o Hotel. Lá, em vez de pedir uma dose de uísque, quis logo uma garrafa de Chivas sobre a mesa. Colossi estava num pé e noutro para conhecer o “Cuia”. Alguém conseguiu o telefone do Rei Momo e o gordo de cá foi sabatinado pelo gordo de lá.

Como não se ouviam as respostas do nosso gordo, só era possível perceber que estava levando vantagem, graças à cara de decepção daquele que se achava o homem mais gordo do Brasil. Colossi perguntava:

— Tens quantos quilos?
Mario “Cuia” respondia e o gordo de lá ia murchando.
— E tua altura?
— 1m90, teria dito de lá o nosso Rei Momo.
— Tens certeza?
Provavelmente o gordo de cá se colocou à disposição para ser medido, ao que o outro confessou:
— Sou dois centímetros mais baixo.

Derrotado por um simples telefonema, que poderia ter acontecido via “Western”, a empresa americana que trabalhava com ligações nacionais, internacionais e telegramas, além de fornecer, gratuitamente, a hora certa, Colossi talvez nem tenha visto o “Cuia”, porque seu interesse, a partir de então, era apenas o dinheiro do cachê, do qual sairia sua porcentagem.

Para acertar as contas com o cantor, que não entraria no Ginásio do Remo sem o pagamento acertado, houve uma reunião na casa da namorada Ali Jezine, Maria Hilda. Ela e Gilka, que viria a se casar com Carlos e passaria a assinar Ferro e Silva, há tempos uma das mulheres mais bonitas e elegantes da sociedade, se empenharam bastante para o sucesso do evento e conseguiram que tudo desse certo. Enquanto o empresário e os organizadores locais faziam as contas, Chico, que não ligava a mínima para dinheiro, chamou Zeno e Sérgio Couto para uma rodada de cachaça – sim, cachaça – num botequim próximo. De manhã, Chivas, por conta dos convidados. À noite, cachaça de Abaetetuba. Talvez fosse na base do quem convida, paga. Zeno ainda teve a chance de receber Chico Buarque, uma segunda vez, no aeroporto, e guarda as melhores lembranças dos encontros.

Sem nenhuma pendência, havia necessidade de informar à cidade de que o grande ídolo da MPB estava em Belém e o show aconteceria. Alguém, que Zeno Veloso, responsável por todas as informações dessa historia relativas à visita e à conversa com o empresário com o “Cuia” não consegue lembrar, sugeriu que se levasse Chico Buarque ao quartel dos Bombeiros, na rua João Diogo. Chico não entendeu nada, mas foi. Era sábado de manhã e a banda da corporação estava toda lá. Conversa daqui, conversa dali,os músicos entraram em posição de desfile e começaram a tocar “A Banda”. Ele adorou.

Como, em Belém, todo mundo conhece todo mundo e todo mundo tem um amigo que é amigo de não sei quem, de uma hora para outra apareceu, na porta do quartel, um carro conversível. O mais chique do momento. Chico foi colocado nele e, atrás do veículo, a banda dos Bombeiros executava “A banda”. Foi quase uma apoteose. O povo delirava. Chico, entusiasmadíssimo com o carinho que vinha das calçadas, interpretava seu primeiro grande sucesso, acompanhado de banda e coral.

O conversível atrapalhou o trânsito, seguindo na contramão. Atravessou a avenida Portugal e entrou na rua mais movimentada do comércio. Naquele tempo, sábado pela manhã, subir e descer a conselheiro “João Alfredo” era o que de mais interessante havia para ser feito. O chamado “footing” constituía programa para quem desejava ver e ser visto. As elegantes e os elegantes desta eterna província-mor do Grão-Pará, chiques & famosos no tucupi, começavam o passeio na Rua “Santo Antônio”, passavam pelo “Paris n´América” e, depois da Praça das Mercês, entravam na “João Alfredo”, que era a mesma rua, apenas mudava de nome. A elegante Sapataria Carrapatoso servia de marco inicial da segunda parte do passeio. A jornada terminava na Livraria Conte, depois de passar pela 4 e 400, que virou Lojas Brasileiras, Lobrás, se transformou em saudade, e por outras tantas lojas, como o Tecidos Lua e Casa Pará. Todas naufragaram. Todo o comércio tradicional daquela área naufragou.

O ir-e-vir de quem fazia compras “lá em baixo”, como era conhecida a área central, ou apenas batia-perna, foi surpreendido com a aparição do cantor, seguido pela banda. Imagino que o próprio Chico já estivesse farto de tanto ouvir sua música, mas nenhum outro movimento de marketing faria mais sucesso do que o improvisado. O cortejo alcançou a “Presidente Vargas” e só foi parar em frente ao Hotel, onde os ouvidos de Chico Buarque puderam, enfim, descansar.

O show foi um sucesso. Os alunos conseguiram bom dinheiro para sua colação e o pobre Colossi caiu na real. Não era o homem mais alto e mais gordo do Brasil. Esse título pertencia ao nosso Mario “Cuia”. Mas o bolso estava recheado de grana

Como se vê, basta puxar a perna de um grilo para encontrar não uma, mas muitas histórias e, com elas, fazer um livro só com as peripécias do nosso eterno Rei Momo.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Cícero Dias (1907-2003) — sem título, s/d.

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2 comentários Deixe um comentário

  1. Adorei essa imagem de “puxar a perna do grilo e desfiar estrelas”, não conhecia. Também gostei muito do desfile da banda, do rei momo Mario “Cuia”. Queria saber porque o cuia….

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