No coração de todos, o Círio da esperança
Diário de um desespero – ou quase – LXV
João Carlos Pereira
A Diretoria da Festa de Nossa Senhora de Nazaré publicou, há alguns dias, nas redes sociais, um lindo clip com imagens do Círio e uma menina cantando. Coisa de fazer chorar, tão tocantes são a expressão e a sua voz. Ao final, a mensagem escrita é uma lição de esperança e de sabedoria. Em uma linha está resumida a recomendação fundamental: o Círio existe e se move em nossas almas. Só ela bastaria para tornar esta crônica desnecessária e pouparia (poupará, assim espero e desejo) longas discussões sobre a realização do Círio, este ano. A frase, embora simples, possui uma profundidade rara e ensina, com a sabedoria própria de quem cuida do Círio para todos nós, a diretoria, que “sempre haverá Círio em nossos corações”. É isso e ponto final.
Volto ao assunto Círio 2020, porque não há um dia em que não me perguntem se teremos Círio este ano. Na semana passada, fui ouvido em entrevista pelo maior portal acadêmico de notícias do Nordeste, o Leia Já, do grupo Ser Educacional, e voltei a repetir o que efetivamente sei sobre a realização da grande romaria este ano: “não sei”. E quem é que sabe? Abaixo de Deus, creio que ninguém. Ou melhor: somente Nossa Senhora de Nazaré. “Nem o Arcebispo?”, insiste uma amiga. Não. Nem ele, nem os padres, nem os diretores da festa, nem o Núncio, nem o Papa. Ninguém sabe. E, se sabe, não diz. Principalmente porque não é hora de dizer, e, sim de ter esperanças.
Quem pode, com absoluta segurança, garantir que a pandemia estará controlada em outubro? Pelo que se vê na televisão, parece que a curva está caindo. Mas, se voltar a subir? Se houver um aperto nas medidas de isolamento? Se o sistema de saúde entrar em colapso, com filas reaparecendo na porta dos hospitais? E se… .E se… E se…? São tantas perguntas para nenhuma resposta, que o melhor mesmo é deixar quieto e entregar a decisão ao Criador.
Com sua responsabilidade de Pastor, D. Alberto só autorizará o Círio, caso haja uma convergência de concordâncias, vindas de diferentes setores. Se existir o mínimo risco, duvido que vá expor o rebanho.
Revejo as imagens do povo imprensado na corda, da subida da Presidente Vargas, do atrelamento, das centenas de milhares de pessoas antes e depois da berlinda. Das gentes aglomeradas em todo canto para ver a Santa. De um por cima do outro nas janelas, nas sacadas, nos pátios dos prédios, nas esquinas.
Minha querida amiga Amarílis Tupiassu – a nossa Lila – me mandou um vídeo maravilhoso, mostrando como na China foi resolvido o problema de distanciamento nas escolas. Durante as aulas, cada menino pendura às costas uma grande asa, de madeira leve, ou papelão, não sei, que delimita o espaço de cada um. Sua ideia era que isso fosse reproduzido aqui. O plano é maravilhoso, mas haveria tempo para preparar tantas asas? E os espertinhos que resolvessem não usar? E se as asas quebrassem? Temos que pensar em tudo.
Por onde a imagem surge, brotam multidões. Como, profissionalmente, cubro o Círio e tudo que o cerca desde 1982, quando entrei em “O Liberal”, isso faz 38 anos, nunca ouvi alguém dizer que houve menos gente em um Círio do que em outro. O que se fala do Círio, serve para todas as romarias que o antecedem ou acontecem depois. O “parece que este ano está mais cheio” não é um clichê, ou suposição, simples palpite. Trata-se de uma certeza. Sempre há mais gente.
Se o Círio fosse semana que vem, ninguém apostaria 1 centavo em sua realização. E se fosse final de junho? Provavelmente, não, também. E julho? Quase certo que a negativa persistisse. Aí começa o segundo semestre. O quadro será outro, mas duvido que a porteira já esteja liberada. Ou será que alguém, até lá, terá esquecido do tanto que sofremos até agora?
Ninguém vai poder dizer 2020 foi um ano que não existiu, porque estaria falseando a verdade. Existiu, sim, e está deixando cicatrizes inapagáveis em todos. Quem já viu um Papa colocar as mãos sobre o rosto e chorar copiosamente, em público? 2020 viu. A imagem de enterros coletivos sendo realizados à noite, com escavadeiras fazendo o serviço que, até pouco tempo, era privativo de coveiros, havia sido flagrado, anteriormente, pela televisão? Em 2020 aconteceu. E a morte, com sua sombra ameaçadora, antes esteve tão perto de todas as casas do planeta? Em 2020, passou. O luto de um, em outro momento da história recente, cobriu a Terra inteira como metáfora ou sinal de uma peste crudelíssima? Seguramente apenas em 2020.
Em que outro ano de nossas vidas as redes sociais, a televisão, o rádio e os jornais se ocuparam, por tanto tempo, de um único e mesmo assunto? A resposta: 2020. Este tempo foi criado para não ser esquecido nunca mais e vai ocupar, para além da memória e do sofrimento de todas as nações, incontáveis páginas dos livros de história. 2020 existe para ser história. 2020 nasceu com garras afiadas, como as de uma águia, e as cravou, violentamente, na jugular do planeta. 2020 começou e terminará sob o signo da dor. Mas também será a grande possibilidade de uma esperança coletiva.
Desde quando foi criado, em 1793, por D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, o Círio sobreviveu a muitas mudanças. Quase todas para melhor. Não existe registro de que, em algum ano, tenha deixado de acontecer. As datas antadas pelos estudiosos se chocam. Círio e trasladação nem sempre foram vizinhos. Com o Recírio a coisa piora muito. Houve épocas em que foi realizado três meses depois do Círio. Com ou sem padre o Círio esteve nas ruas. Há registros de Círio paralelo, quadra nazarena ocupando as dependências de um hospital. Os devotos já testemunharam de um tudo, como diria o Edwaldo Martins, que adorava o Círio.
Em passado distante, a festa de Nazaré foi encerrada sob o som de balas. No Círio do cólera, as pessoas caiam mortas no trajeto da romaria. Houve Círio sem corda e chegando no meio da tarde. Círio que saiu enquanto o Arcebispo celebrava a Eucaristia. A santa partiu e o povo ficou na missa. Círio com a imagem literalmente enrolada no manto, no pior estilo “Maria-mijona”. Círio de vários golpes políticos. Círios do império, da república, da democracia e das ditaduras. Círio com uma imagem indo e outra, vindo. Círio com a padroeira usando um manto para ir e outro para retornar, graças a duas promessas de gente poderosa. Círio de manhã e Círio à tarde. Círio debaixo de temporal e Círio se arrastando ao sol escaldante de depois do almoço. Mas Círio sob o risco de uma pandemia será a primeira vez.
Escuto as mais diferentes ideias para que o Círio aconteça sob diversificadas formas e/ou plataformas. Todas plausíveis. Um amigo disse que a imagem deveria ser colocada em um helicóptero e, como já aconteceu, abençoasse a cidade do alto. Outro imaginou a Santa do achado sendo levada da porta para o interior da basílica, sob as lentes da televisão, e colocada no nicho do altar. Outro, esse um tanto aloprado, imaginou a berlinda sobre um carro do corpo de bombeiros. Enquanto isso, o povo ia endoidecendo atrás, tentando tocar no veículo. Pior do que isso, apenas o caos.
Gosto da ideia de um Círio virtual. As televisões programariam clips, entrevistas, tudo como acontece normalmente, ao longo de algumas horas de transmissão. Enquanto isso, a Santa iria ou pelo alto, ou a veríamos através de efeitos visuais, como holograma, pelas ruas de Belém. Isso é possível. Haveria uma imagem projetada, real e irreal ao mesmo tempo. Sairia a berlinda física e veríamos a virtual. Tudo isso é possível.
Sei que a Diretoria trabalha como se a realização do Círio tradicional fosse uma coisa assegurada. Muito se tem falado que a palavra normal vai esvaziar-se do significado antigo e, ela também, precisará se reinventar, para usar a palavra da moda. Enquanto não surgir uma vacina conta o corona vírus, nada vai ser como antes.
Não está escrito em lugar algum que o Círio tem de ser como sempre foi. Tradição é coisa que se mantém ou se altera. E quando se altera, se mantém. Se o Círio de 2020 não for igual ao de 2019, paciência. Será um Círio especial. Os patrocínios e apoios precisarão ser mantidos e, se possível, ampliados, porque a Igreja precisa desses recursos. Não haverá tantos gastos com flores, sonorização, corda, etc etc etc. O que se arrecada com o Círio é usado, em grande parte, para a caridade. Se isso não é divulgado, é porque a Diretora segue a palavra de Jesus: não saiba tua mão direita o que faz a esquerda.
Muito do que entra para o Círio é direcionado para as creches que a Basílica mantém. A Fundação Nazaré também recebe um pouco. O dinheiro que chega é muito bem utilizado. Outra coisa que é preciso dizer é que a Diretoria trabalha de Círio a Círio sem receber um único centavo. O que nunca foi noticiado é que muitos diretores tiram recursos do próprio bolso para ações que sequer chegam ao conhecimento da população. Como eu sei disso? Há quase quatro décadas, o único assunto jornalístico a que me dedico com especial afinco é o Círio. Isso 365 dias por ano. Posso garantir, sem medo de errar, que, sem a Diretoria, o Círio não andaria um quarteirão. Na verdade, nem sairia.

Há muitas formas de fazer o Círio
Há muitas formas de fazer o Círio. A pandemia coloca a criatividade e a fé diante de um desafio. A menos que um milagre rasgue os céus do planeta e, do dia para a noite, aglomerações sejam toleradas e, mais do que isso, aceitas, o Círio no formato atualizado há 228 anos poderá manter a escrita. Se não mantiver, será Círio do mesmo jeito. Haverá cartaz, peregrinações em casas, guardadas as recomendações sanitárias. Será servido o tradicional almoço, mas de uma forma diferente. Ou igual, não sei. Ninguém sabe.
Esteja a Santa na rua, em versão real, ou no modo virtual, seu lugar cativo é o coração do devoto. A imprensa trabalhará do mesmo jeito. Faremos reportagens, transmitiremos o Círio de qualquer maneira. Se houver chance, um holograma da berlinda poderia ser colocado em ação. A corda não será cortada, mas estará lá, em intenção. Todos farão seu sacrifício e duvido que não haja dezenas, centenas de pessoas se arrastando sobre o asfalto para pagar promessas. Um bem distante do outro. Quem quiser – e se for permitido – cumprirá o trajeto, pagando sua promessa, carregando a cruz do agradecimento.
As ruas e avenidas por onde Círio vai poderão permanecer fechadas. Todas as homenagens a Santa serão honradas, mesmo que Ela não esteja diante dos peixeiros, dos feirantes, dos estivadores, dos arrumadores, dos bancos. Tudo acontecerá tal e qual. Se Ela costumava merecera alegria dos fogos dos peixeiros às 8 da manhã, que isso se faça como de sempre. Corais cantarão, artistas se apresentarão, mesmo que não venha a berlinda. O Banco do Brasil deve soltar os balões e as serpentinas, imaginando que a Senhora aprecia o gesto. As casas se enfeitarão e, quem se sabe, os amigos possam se reunir para ver o Círio na TV. Talvez haja arraial, ou cavalinho, como se dizia antigamente. Talvez não seja montado. Belém terá o seu Círio de uma forma ou de outra, porque ele faz parte do nosso DNA espiritual. 2020 não será um ano sem Círio. Nunca deixará de haver Círio.
Se não acontecer Círio real, ninguém morrerá, nem Nossa Senhora de Nazaré ficará aborrecida. Mas, se houver condições adversas, muita gente pode morrer. Essa hipótese, porém, tenho certeza, não existe.
Expectativas infundadas são inúteis nesta hora. O Senhor sabe o que é melhor para nós. Inclusive a formatação própria para o Círio. E D. Alberto, depois de ouvir a ciência e voz de Deus, será o porta-voz da esperança e da razão.
Até lá, nosso coração vibrará feliz, num permanente
Viva Nossa Senhora de Nazaré!!!
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Mário Barata II — Theatro da Paz e a Virgem de Nazaré, 1999.
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