Atravessar o deserto

Helen Novaes

Os convido a contemplar por alguns instantes a paisagem do deserto. É possível admirar sua beleza inóspita e exigente. O espírito da quaresma que acabamos de vivenciar é perfeitamente representado pela imagem do deserto. De fato, o deserto talvez seja a representação mais autêntica da trajetória de todos aqueles que buscam um encontro autêntico com Deus e consigo mesmo. É o local por onde se desenrola a história do povo de Deus, dos profetas, dos buscadores, do próprio Jesus e também a nossa própria história.

O deserto não permite o supérfluo. Ele mesmo se apresenta somente com o essencial. Não há nenhuma vegetação exuberante. Não há quantidades inumeráveis de flores. Não há muitos seres habitando sua aridez e aspereza.
Só existem diferentes matizes de uma mesma cor e seu contraste com o céu.

Os sons do deserto, são as poucas variações dos acordes do silêncio.
O deserto é indiscutível abundância; mas de uma única e mesma coisa o tempo inteiro. O Deserto é a natureza despida.

A nudez do deserto expõe nossos excessos e sua beleza monótona confronta nosso acúmulo de coisas assim como o volume de ruídos que fazemos. No deserto só sobrevive o real, o autêntico. Não cabe no deserto os excessos, as meias verdades, desculpas e subterfúgios, a subjetividade. O deserto é concreto, mas não se apresenta como imperativo, apenas é o que é, em sua verdade límpida e incontestável.

Existe no deserto um vento que sopra constante e insistentemente, fazendo sempre a mesma pergunta: Quem és tu?

JESUS E NÓS. HOJE NO DESERTO

O deserto não permite viver de falsas imagens, mas nos ensina a distinguir o que é real do que é apenas uma miragem. Aquele que se dispõe a atravessar o deserto sabe que ali terá um encontro marcado com seus próprios demônios.

Se a Jesus o demônio ofereceu pão, a nós oferece distrações. A falsa saciedade. O embotamento de nossos sentidos. Entorpece nossa consciência e nos mantém na apatia.

Se a Jesus ofereceu reinos e poder, a nós oferece a comodidade e as falsas seguranças que nos paralisam e promovem a estagnação. E viver estagnado é viver com o peso de uma vida não vivida.

Se a Jesus, satanás convidou a lançar-se das alturas, a nós nos convida a permanecer comodamente onde estamos, sem nunca nos atrevermos a outros olhares e tampouco a ampliar nossos espaços. Nos cobre com o manto da prudência, para assim esconder nosso medo de correr riscos, medo da própria autenticidade. Medo da dádiva da originalidade de ser quem sou. Vai atrofiando-nos e nos fazendo menores do que fomos chamados a ser. Aquele que não faz uso de todo o potencial que lhe foi dado de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais.

No deserto encontramos também o demônio do esquecimento que dissimula e nos faz duvidar de nossas experiências mais profundas com Deus de onde nascem a confiança e a liberdade de filhos. Do esquecimento de Deus, podemos vagar perdidos na própria existência, enganados pelas miragens dos bens e posses que nos ilusionam em falsas seguranças fazendo parecer que este é o sentido da vida.

O DESERTO É SILÊNCIO.

O deserto não necessita de muitas palavras. Elas caem em um vazio, são insuficientes. Não sabemos ao certo se no deserto é onde habita o silêncio ou se ele próprio é seu corpo e face.

O Deserto nos faz perceber como nossas palavras costumam romper como notas desafinadas, a sinfonia harmoniosa da vida que por si só pulsa a nosso redor. Vida que não depende de nossa vontade, nem está no nosso controle. Vida que vai se desdobrando de milagre em milagre. De agora em agora.

O encontro com o deserto nos faz calar, para aprender o idioma de Deus que é silêncio. Ajuda-nos a desfazermo-nos dos pesos desnecessários, a contemplar-nos com os olhos de Deus que vê nossa essência e, portanto, nos faz reconhecermo-nos como filhos livres e herdeiros de seu reino.

Por fim, o pedido de graça que nos ensina o deserto e que deve permanecer em nosso coração não só na quaresma, mas em todo o tempo deve ser: Senhor ajuda-me a ser QUEM VERDADEIRAMENTE SOU!


Imagem: Isamu Araki (1947- ). Sublime, 1996. Enciclopédia Itaú Cultural.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Que texto profundo, Helen!
    Amei os diferentes tons do texto e a comparação das tentações de Jesus com as nossas…
    Que o Bom Deus continue lhe cuidando e abençoando sempre!
    Beijos

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