Deus faz novas todas as coisas
Francisca Henrique
A vida vai seguindo por caminhos inimagináveis e muitas vezes a gente não sabe o que fazer, o que dizer… Quero falar da morte do meu filho Emerson, assassinado quando tinha 25 anos. Foi um golpe terrível, perdi o chão, a vontade de viver, perdi tudo… Naquele momento senti minha miséria total, minha impotência, estava só, órfã, experimentava a maior dor que cabia em mim.
Deus estava ausente. Cresci ouvindo que não acontece nada que Deus não queira… Lembrei da ausência Dele na cruz: Jesus morrendo e Ele não fazia nada… Porque faria algo por meu filho? Dinheiro eu podia conseguir, mas não podia mudar nada… O amor cura e pode tudo, ali meu amor gigante não era nada… Assim, segui meus dias desamparada e sem sentido. Falei dessa solidão com a Virgem Maria: só ela conhecia minha dor.
Passado algum tempo, fui sentindo uma fresta de luz em meu coração sombrio – já conseguia sentir o carinho dos amigos. Foi quando atendi um telefonema, “sem querer”, de uma cliente muito amiga que me falou algo que me fez ficar atenta: “estou te esperando”, ela disse. Eu sou manicure e ainda não tinha ido atendê-la: era para cuidar de suas unhas. Essas palavras ficaram ressoando dentro de mim. Acabei indo e, aos poucos, percebendo a vida pulsar de novo. Sentindo Deus, não como mágico que pode intervir nas atitudes humanas: somos livres!
Eu sempre rezava para Deus proteger meus filhos! Agora entendia que Deus não protege ninguém Ele nos lança para a vida e todas as consequências de estar vivo. Deus morreu com meu filho e nasceu de novo em sua filha, 3 meses depois. Que loucura pensar que Deus ama tanto o assassino como ama meu filho! Senti um colo enorme de Deus me acolhendo sem me cobrar nada pelo meu afastamento, minhas palavras cruéis e meu desprezo por Ele. Comecei a ter um olhar diferente, desfiz a imagem de um Deus que fazia tudo por mim, que através de meus pedidos e orações protegia os meus caros. Pensava nos retiros que eu tinha feito, toda a minha história e relação com a espiritualidade, as pessoas que conheci neste caminho. E um novo chamado à vida. Deus não me protegeu, nem a meu filho, nem a ninguém, porque somos livres para fazer o que quisermos. Ele sofre junto e nos ama. Decidi trilhar esse caminho com esse Deus reconstruído que me ama apesar de tantas coisas…
Agora minha relação com Ele mudou totalmente. Senti forte o chamado para amá-Lo e segui-Lo, não para ser protegida, mas para sentir seu amor e ampliar meu olhar. Organizar meus afetos (que estavam todos desordenados) indo sempre em direção de mim, do perdão, da vida e do amor!
Quem sou eu, depois de tudo que me aconteceu, o que restou? Mudou tudo, a paisagem, a imagem de Deus que morre e nasce de acordo com as circunstâncias. Quantas vezes eu me reconstruí com esse amor que chegou através de um abraço, um sorriso, uma palavra, um olhar, um silêncio. Deus é bom o tempo todo, o tempo todo Deus é bom! Espiritualidade inaciana e os amigos CVX me ajudaram a caminhar de novo. Um outro jeito de me relacionar com Deus, com a minha dor, a partida do meu filho… “Deus faz novas todas as coisas” e foi nascendo algo novo em mim.
Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o saborear internamente todas as coisas. Saboreando esses sentimentos, fui voltando para mim, minha vida, meus projetos, trabalho, enfim fui voltando a viver. Foi um tempo sofrido, árduo, com discernimento, mudança radical na relação com Deus. Minha resposta “faça-se em mim segundo a vossa vontade”, a minha mudou de lugar com muita tranquilidade. Deus ama sem exigências e restrições, sou herdeira desse amor. Assim com esse novo olhar, tenho leveza para fazer leitura dos acontecimentos, atitudes alheias. A vida é um mistério, somos aprendizes e vamos nos construindo no dia a dia. Alegria veio voltando tímida, a vontade de viver chegando devagar, afinal a responsabilidade do “sim” e do “não” é minha. Os meus que ficaram – netos, amigos – me queriam de volta.
A maior dor do mundo, é a da mãe que perde um filho. Prefiro dizer que a dor que dói mais é a do momento, e a dor que nos afasta de nós mesmo, da vida e de Deus. Assim, com esse olhar de quem tem a vida nas mãos, não cultuando mais a dor, a tristeza, reconhecendo esse novo momento. Vou agradecendo a Deus a vida do meu filho Emerson, que Deus permitiu, por algum tempo, ficar ao meu lado. Hoje celebro a vida e não a morte. Lembrar dos momentos bonitos e agradecer! A dor diminuiu, a alegria e as cores voltaram, sinto muita gratidão, quero e preciso comunicar esse Deus amor para as pessoas. Ir além da dor, tem sempre algo novo à nossa espera!

Rezar é abraçar a vida como ela é
Cardeal José Tolentino
Essa foi uma frase que bateu forte em mim, no início de um retiro recente. A vida, sem ilusões e fantasias, com amores e dores, a vida do aqui e agora. “Sinto-me eleita de Deus. Estou aqui não para que Deus me ajude, mas para ajudar a Deus” (Etty Hillesum). Essa frase me desestabilizou: como assim, eu ajudar Deus? Foi um momento forte.
Então minha relação com Deus teve três momentos: 1° Deus tudo pode, protege todos que eu peço e quero, Ele está a meu serviço; 2° Deus não é mágico, me ama, me lança para a vida e todas as consequências; 3° Deus me ama, pede minha ajuda e necessita de mim! Foi difícil entender e tirar toda a dependência dele… Fazer por mim o que só eu posso fazer, é um sentimento estranho – é tão bom Ele fazer tudo… No primeiro momento essa liberdade me trouxe angústia e medo, mas depois me faz sentir amada e livre e capaz. Deus me quer assim: adulta na fé, responsável. Muitas vezes por meu descompromisso de colocar a responsabilidade nele, sofri as consequências. Estou mais perto e íntima dele.
Ah! Eu não perdi meu filho, entreguei o que Ele me deixou cuidar por um tempo. Nessa vida nada me pertence, tudo é empréstimo! Senhor que eu aprenda a cuidar com amor, tudo o que você me confia!
Tomai, Senhor e recebei
Santo Inácio de Loyola
Toda a minha liberdade, a minha memória também.
O meu entendimento e toda a minha vontade
Tudo o que tenho e possuo, vós me destes com amor.
Todos os dons que me destes, com gratidão vos devolvo
Disponde deles, Senhor, segundo a vossa vontade.
Dai-me somente, o vosso amor, vossa graça
Isto me basta, nada mais quero pedir.
Francisca Henrique é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade São Paulo Apóstolo, Belo Horizonte (MG).
Imagem: Carmela Gross (1946-). Sem título, 1985. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.
Que depoimento forte!
Refazer a relação com Deus depois de uma perda imensa, sendo chamada a ajudar, servindo… Muito obrigada por compartilhar, Francisca!
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Maravilhoso depoimento. Fé adulta, amar a Deus como Ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Que caminho doloroso mais libertador ! Obrigada Francisca por seu depoimento que muito ilumina a todos nós caminhantes e buscadores. Você nos ajuda a encontrá-lo verdadeiramente. Gratidão por sua vida e de Emerson.
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Obrigada Francisca pelo seu depoimento,suas palavras nus torna mais forte e mais compreensivos com Deus te com todos ,Deus te abençoe 🙏😘
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Que alegria sinto em caminhar com você. Meu coração acompanha o seu, nas dores, nas vitórias e, sobretudo na fé.
Quanta inteligência e maturidade espiritual!
Deus te abençoe, minha querida amiga!
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Querida Francisca, seu depoimento com tanta dor e tanta fé, tanta certeza do Amor de Deus me emocionou. Agradeço a Deus pelas suas palavras e muito mais do que ela, pela sua vida.
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Que reflexão …..forte demais , preciso refletir sobre os meus afetos para melhorar meu relacionamento com Deus .
Obrigada Francisca pelo depoimento , Deus te Abençoe.
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Dona Francisca!
Agradeço por ser instrumento do amor a Deus. Quem tem sentimentos pode ser abalado pelos acontecimentos, mas no final a fé de quem ama a Ele prevalesce!
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