Um desafio chamado Mario Baratta

João Carlos Pereira

Quando Mario Baratta decidiu, há alguns dias, aproximar os passos da berlinda do Círio dos passos da paixão de Jesus, na Via Sacra, talvez nem imaginasse que grande descoberta teológica, de base mariana, estava fazendo. Nossa Senhora, trinta e três anos, depois de haver experimentado a imensa alegria do nascimento do Meninozinho que traz no colo pelas ruas de Belém, acompanhou, com o coração partido, lanhado, ensanguentado, furado por adagas terríveis, a tortura imposta a seu Filho.

Ainda que Ele carregasse uma pequena parte das culpas que lhes eram imputadas, não precisaria de tanto castigo, de tanta pancada, de tanta humilhação. De longe, sua Mãe, Maria, a tudo assistia, sentindo na alma a dor de cada bofete, de cada açoite, de cada queda, de cada pedaço de carne rasgada pelos pregos que o fixaram na cruz. Conhecia, entre lágrimas, o sabor amargo e salgado do sangue que escorria das feridas abertas e inundavam as mesmas entranhas onde Ele foi gerado.

Os passos da Via Dolorosa não são os da berlinda, que trafega entre as contas dos mistérios gozosos, gloriosos e luminosos do terço, no segundo domingo de outubro pelos históricos caminhos do Círio. Os que evocam a dor de Jesus são os da Via Sacra, para os quais Ele nasceu, a fim de, pela morte e ressurreição, anunciar à humanidade um novo tempo.

Os caminhos do Círio, cada parada da berlinda, representam e justificam a rota da alegria.

Não por acaso, porque nas coisas de Deus essa palavra nem existe, o segundo domingo de outubro – ou quaisquer outros domingos do ano – é dia de celebrar a Ressurreição, a Ascensão, a descida do Espírito Santo sobre Maria e sobre os apóstolos reunidos no cenáculo, a Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao céu e sua coração como Rainha do Céu e da Terra, dos homens e dos anjos.

Esta grande alegria está presente em cada uma das quinze aquarelas que Mário Luiz Barata Jr. pretende apresentar, tendo como base numérica os momentos mais difíceis da vida de Jesus. Nossa Senhora da berlinda tem o Menino no colo e O anuncia para o mundo, a fim de que cumpra seu destino. O verbo encarnado de Deus é a alegria de Maria de Nazaré e nossa.

Mario Baratta é meu amigo e meu irmão desde sempre. Fizemos concurso juntos, nos anos 80, para a Universidade do Estado do Pará. Terminamos uma das provas na mesma hora e nos encontramos, pela primeira vez na vida, no alto da escada que nos levaria ao o térreo. Mario perdeu o primeiro lugar por apenas 0,05 pontos. Quando nos despedimos, não sabia quem ele era e fiquei muito triste porque, sem imaginar o que a vida reserva a cada um de nós, o perderia de vista por um ano.

Não perguntei seu nome e tampouco tinha o contato dele. Mesmo assim, o Mario ficou repousando no meu coração. Um dia, ele reapareceu. Minha alegria foi tão grande ao vê-lo, que nunca mais passou. O primeiro colocado, nosso amigo Haroldo Baleixe, havia sido aprovado em concurso para a UFPa. e coube ao Mário assumir a vaga. Anos depois, o mesmo Mário foi aprovado em concurso para a Universidade Federal e deixou a Uepa. Nesse momento, eu já não estava mais lá, porque nosso salário era muito baixo e as contas não poderiam esperar pelas melhorias prometidas. Mesmo com suas idas e vindas, com as muitas voltas que sua vida deu, nunca mais sumimos um da vida do outro.

Mario é, independente da amizade que nos une, o maior aquarelista do Brasil contemporâneo. Em Macapá, onde mora e foi encontrar a felicidade ao lado da esposa, Bárbara Damas, uma artista excepcional, ele produz a série que, a partir de hoje, passará a ser o tema das crônicas que publicarei de hoje até o Círio e as ilustrará.

Ele me pediu uma legenda de três linhas para cada trabalho. Espero que os reúna, ao final, e produza um álbum com páginas soltas, tiragem limitada, assinada, com a possibilidade de emoldurar as aquarelas.

Quem quiser conhecer a alma de Mario Baratta não precisa olhar para além daquilo que pinta, ou fixar-se em suas mãos com dedos longos, com grossos nós nas articulações.. As linhas incertas possuem uma delicadeza tão grande, que dão a impressão de serem tecidas numa espécie de renda sobre nuvens. Ou de sonhos sobre a esperança luminosa.

O texto lírico feito de tintas em tons suaves, como sua voz, parece dançar suavemente sobre o papel, enquanto passa de uma cor a outra como se flutuasse sobre um jardim. O olhar daquilo que a teoria do conto chama de “momento privilegiado”, o instante em que o narrados fixa a atenção sobre determinado fato, mais longo do que a brevidade da crônica, mais curto do que o mundo do romance, constrói uma narrativa que se movimenta como o Círio. No mesmo ritmo, com igual beleza.

Logo depois da legenda, seguirá uma crônica.

Que difícil essa missão que o Mário me confiou. Dizer em palavras o que ele já esgotou como possibilidade de expressão. É um desafio que Félix Fénéon, um italiano nascido em 1861, na cidade de Turim, adoraria enfrentar. Anarquista, crítico de arte e jornalista, tornou-se um mestre na concisão. Em apenas três linhas, era capaz de recriar um universo e condensar uma história completa. Cabia ao leitor compreendê-la.

Fénéon é meu guru em muitos sentidos. Acho que nunca serei um incendiário ao seu estilo, tampouco conseguirei ser tão sucinto, tão poético (ao mesmo tempo cáustico) e tão objetivo, como ele, mas não custa tentar.

Nossa Senhora de Nazaré haverá de me ajudar, como sempre, aliás, porque legendar uma aquarela de Mario Baratta será tão difícil como pedir à cor que se recrie e se defina.

Amanhã começarei a publicar as imagens e as legendas.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Wega Nery — Composição nº 5, 1953. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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