Para caminhar entre os mortos e o roteiro dos “santos” populares
João Carlos Pereira
É difícil caminhar entre os mortos. Atravessar a morte pelas trilhas, um nada de piso separando as sepulturas. No contrário de uma cidade que cresce para cima, a morada dos defuntos verticaliza-se para baixo, empurrando um pouco mais para o lado o resto de palmo de chão disponível. Não chega a ser como o cemitério judeu de Praga, onde uma cova avança sobre a outra, desenhando a estranha e magoada cena de superpopulação. Lá, a lei de Newton é claramente desmentida: dois corpos – literalmente – podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo lugar no espaço – o espaço sagrado dos finados. Passar pelas picadas (sim, a isso elas foram reduzidas),no cemitério de Santa Izabel, quase se transformou num exercício de sobe-e-desce de sepulturas.
Não estou falando das alamedas, mas do miolo. Escalam-se tumbas como se fossem degraus das eternas moradas. Ao longo de muitos anos, veio acontecendo um fúnebre chega-pra-lá para dar espaço a novas covas. E no meio do caminho – diria o poeta, surgia uma campa. Do silêncio esmagado pelo choro e pela dor brotou um espaço para outro que partiu. E assim foi, foi, foi até que ficou muito complicado conseguir os indesejados, mas necessários, sete palmos.
Doi caminhar entre os mortos. Sinto o estalar dos ossos debaixo dos meus pés. Trafego pelo chão da eternidade (para eles, não para mim, ainda, e felizmente)´, pedindo licença, consentimento dos que lá estão para seguir em frente. Não chego a escutar o assombroso convite feito pelas caveiras que compõem (ia dizer decoram, mas recuei)as paredes da Capela dos Ossos, na Igreja de São Francisco, em Évora: “nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”. Para me livrar da tensão, repudio o chamado, respondendo mentalmente: “esperem deitados, mortos, de preferência, porque os meus não pretendem unir-se aos vossos tão cedo”.
Evito olhar diretamente para os retratos à minha volta. Eles me observam, acompanham, em sua plácida e angustiante solidão. Senhores antigos, viúvas que acompanharam os maridos dos quais, provavelmente, um dia desejaram apartar-se, mas foram reunidas para e pela eternidade no idêntico destino. Se era para ser até que a morte os separasse, por que uni-los novamente? Jovens sem futuro algum esperam o inexistente amanhã, naquele campo de Mandrágoras. Todos parecem submetidos às porções feitas com raízes da planta que, se usadas em quantidade certa, levam o vivente a um estado de torpor. Nas cirurgias da Idade Média ela era essencial. As bruxas usavam-na para experiências extra-corpóreas. Diz-se também que produz ganhos afrodisíacos, desnecessários às caveiras. Todos adormecem sob seu efeito, aguardando a hora de retornar à vida, quando tocar o sino da ressurreição.
Não quero ver, mas vejo, as datas dos longos sonos. Há famílias inteiras cobertas sob o mármore onde escavaram-lhes os nomes. São felizes os que podem ser identificados no baixo-relevo, porque quem ficou para ser lembrado pelo bronze não mais pode sê-lo. Os ladrões afanaram as letras, os números, as assinaturas, as declarações de amor, os Cristos pregados na cruz de mármore para a memória da Salvação. Até aquelas pequenas e suntuosas capelas de ar gótico, refinadas e derradeiras moradas de gente de posse, viraram, Deus me perdoe dizer, depósito de vassoura e lata. Ainda bem que mortos só reclamam por reza e por silêncio. Restaram intactas as estátuas de mármore.
Passar por entre os mortos demanda necessidade. Não gosto de cemitérios. Só vou em caso de extrema necessidade, para um adeus ou para uma pesquisa. Por minha vontade, nunca iria lá. Nem morto.

Nossos cemitérios permitem um encontro com santos ditos populares, aqueles que o povo “canoniza”, poupando trabalho ao Vaticano, que é o fazedor oficial de operadores de milagres. Aqui temos intercessores para todos os gostos e credos. Uns tiveram a fama cultivada, outros viram-na ceifada no nascedouro. Foi o caso de uma pessoa muito conhecida, que escapou desse destino, por providencial intervenção da família. Um dia, um parente foi visitar a sepultura e encontrou uma placa de mármore, como registro de obtenção de graça. Ele chamou a zeladora e mandou sumir com aquilo e com todas as outras que, eventualmente, aparecessem. Mesmo sem ter que dar nenhuma explicação, reclamou: era só o que faltava. Agora vão dizer que está fazendo milagres.
Embora haja registros dos meus mortos em Santa Isabel, sei que não estão lá. Por isso não os visito. Mas a crença do povo leva multidões para o túmulo do médico Camilo Salgado. É tanta vela, tanta vela, que às vezes parece estar incendiando. Como sei? Fui aluno e, depois, professor da UFPa. O cemitério estava no meu caminho. Nas noites de segunda-feira, o dia das almas, evitava passar por lá, mas era inevitável. Não entendo a razão de ter de ir à beira da cova para pedir ajuda. Um espírito evoluído escuta a oração feita de qualquer lugar. Se eu fosse uma alma com poder de ajudar alguém, não ia querer algazarra diante da minha campa. Faria uma aparição espetacular e expulsava todo mundo de lá.
Outros dois médicos exercem a caridade e a profissão a partir do Santa Isabel: Crasso Barbosa, morto em 1919, e João Carlos Maciel, em 1979. Eles são muito procurados por quem busca saúde e não a encontra nos hospitais.
No meio do caminho, entre a capela e a porta, há o cruzeiro, indicativo de que aquele lugar é sagrado e não um lixão de cadáveres. Sobre o campo santo cresceram mangueiras enormes, adubadas pelo que restou das gentes ali repousadas. As mangas que produzem são enormes e parecem apetitosas, mas quem disse que teria coragem de provar alguma? Na minha cabeça, têm gosto de cadáver. No cruzeiro acendem-se velas pelas almas, não pelos corpos. Almas que carecem de iluminação.
Josephina Conte está sepultada à esquerda da capela, pelo lado de quem entra. É a moça do táxi. Dizem que o pingente traz no pescoço é indicativo de sua presença ou ausência no ambiente. A pista está no retrato tumular. Corre que ela saia do leito eterno, apanhava um carro de praça, dava uma volta e dizia para o motorista receber o valor da corrida com o pai. Na primeira vez, até acredito que tenha sido verdade, o saudoso genitor honrou o compromisso, depois que o condutor identificou a passageira como a moça da foto pendurada na parede. Depois a história se espalhou e um monte de espertalhões devem ter se aproveitado da dor daquele homem. Quem tem caridade com os mortos?
Há túmulos lindos naquele cemitério. Verdadeiras obras de arte do final do século XIX, começo do século XX. Esculturas lindas, como a do anjo da morte e de outros tantos anjos. Um deles aparece debruçado sobre a eça vazia, depois que o caixão foi levado. Uns vigiam, em sua forma de anjo “adulto”. Outros são crianças, os anjinhos chamados. Por terem sido esculpidos no mármore, resistiram à ação dos bandidos. O maior e mais bonito de todos, anotou a pesquisadora e querida amiga Célia Bassalo, foi a última peça art nouveau a dar entrada na alfândega de Belém. Ela veio da Itália e simboliza o gesto de amor do anjo, com suas asas enormes, levando para o céu a alma da mulher ali sepultada.
Menos glamour teve a despedida de Severa Romana, que preferiu morrer a ceder ao assédio de um estuprador? Um túmulo pouco visitado é o da escultura Carmen Souza. O projeto foi desenhado por Ruy Meira e é muito bonito. Paulo Maranhão também está lá, debaixo de uma pedra onde se lê a angústia de uma vida inteira: “aqui, sim, tenho paz…” Muitas famílias ilustres e ricas de Belém construíram mausoléus de diferentes feições para abrigar seus falecidos.
Um roteiro dos túmulos dignos de visita, digamos assim, seria um belo projeto, mas já nasce inviável, dada a insegurança. Paula Andréa Rodrigues, pesquisadora de primeira linha, autora de um belo livro sobre o lugar, elaborou um “mapa” para o “Soledade”, onde repousam a Preta Domingas e Zezinho que, quando desce nas casas de Umbanda, na linha dos erês, pede bombons e brinquedos. Outro menino chamado “Cícero” e uma escrava, Anastácia, ali foram sepultados. O túmulo da Anastácia seria o mais antigo do campo santo.
De Raimundinha Picanço nada sei. A única informação de que disponho era que fazia o bem e ajuda os que a ela pedem graças. No cemitério de São Jorge estão sepultados pelo menos três santinhos populares. Uma foi Diene Ellen, vítima do próprio pai, que a estuprou e esquartejou. A criança tinha apenas dois anos, em 1973, e o gesto ficou conhecido como “o crime da mala”. Marinaldo e Marivaldo também descansam na Marambaia. Numa noite sem luz, o pai dos meninos deu a eles veneno, achando que era xarope e a desgraça se fez.
Quem sabia tudo sobre os mortos era o querido Walcyr Monteiro, mas ele já se foi. Escritor profissional, teve tempo de escrever e de publicar muita coisa sobre os mistérios desta vida e desta morte também.
Não gosto de cemitérios. Nem dos daqui, nem dos chiques & famosos deste mundo. Uma simples visita turística ao Pére Lachaise, de Paris, e ao da Recoleta, em Buenos Aires, me deixou o resto do dia com dor de cabeça. Não tenho problema com os mortos, porque um dia serei como eles. Mas quanto a visitá-los em sua derradeira morada é programa que dispenso.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Carlos Araújo — As crianças e as flores, 1987. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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