O nosso João voltou para a Casa do Pai
João Carlos Pereira
para Maria Lúcia Falângola,
com solidário e entristecido abraço de irmão
O nosso João escolheu o domingo, dia do Senhor, para encontrar-se com o Criador. Há algum tempo sabíamos que sua saúde vinha se deteriorando, mas ele sempre dava a volta por cima e retornava para nós. Foram pneumonias seguidas, tratamentos constantes, hospitalizações, a memória aos poucos se apagando. Mas o nosso João sempre voltava para nós.
João José da Silva Maroja era um homem cortês, elegantíssimo e sábio. Um homem justo, correto, decente. João José da Silva Maroja era o nosso João. Foram anos, muitos anos, de convivência quase diária, pelas manhãs, o antiquário da Lúcia Falângola, o anjo que ele encontrou e o protegeu até o fim. Quando adoecia, dividia com os filhos a tarefa de acompanhá-lo no hospital. Seus netos eram netos dela. Quantas viagens fizeram juntos, quantas alegrias dividiram, quantos problemas enfrentaram de mãos dadas. A mãe de seus filhos se chamava Lúcia. Seu último grande amor também era Lúcia. Maria Lúcia, como a chamava, com sua voz rouca e firme, sempre terna, sempre doce. Hoje pela manhã, ela me previu, entre lágrimas: estamos perdendo o João. E me falou de uma dor terrível: “a minha alma está doendo, João Carlos. Doendo muito”.
O nosso João tinha a melhor cadeira do antiquário. Quando ele chegava, no final da manhã, a dona da casa oferecia-lhe o lugar privilegiado. João reinava entre nós. Falávamos sobre todos os assuntos, ríamos de tudo, principalmente de nós mesmos, de nossas mazelas, de nossos esquecimentos, de nossas leseiras. O nosso João nos deva essa lição de sabedoria.
Todas as vezes que nos despedíamos, ele me dizia: me recomende à Dra. Emília. Mandava beijinho para a Beatriz, cujo crescimento acompanhou, e pedia: “me queira bem”. Desnecessário pedir. Querer-lhe bem era natural. Quando me via engordar, mangava: “o que eu gosto é que continuas emagrecendo”.
No meu primeiro dia no Tribunal de Justiça, cedo entrou na minha sala, sorriso no rosto, simpatia exalando por onde passava, e reclamou: “como o senhor não vai me visitar, eu venho vistá-lo”, reclamou, fingindo distanciamento. Lá ele não era o nosso João. Era o desembargador Maroja. Nada de intimidades no ambiente de trabalho. Quando fechava a porta, caia na risada. Desde então, não passava semana sem que subisse ao seu gabinete para tomar um café. Parava o que estivesse fazendo, ia me buscar na porta, me dava um abraço e ficávamos proseando.
O nosso João gostava de arte. Vivíamos cercados por peças antigas no “Tutto Vecchio”. Ele era encantado por arte sacra e objetos da Belle Epoque. Nosso João tinha alma doce e sensível. Mas se seu senso crítico era implacável. Era capaz de se exasperar, quando defendia causas em que acreditava. Por isso sempre foi um grande julgador. Quisesse vê-lo nos casacos era falar em Dilma Roussef. Pegou um abuso tão grande pela ex-presidente, que não se referia a ela se não fosse para xingá-la. Nosso João não levou magos de ninguém, mas sabia muito bem quem o havia prejudicado e com que propósito. No fim da conversa, era generoso e pronunciava seu perdão. “Deixa pra lá. Eles vão se acertar é com Deus”!
Católico fervoroso, o nosso João dirigiu a Festa de Nazaré. Em 2002, na condição de coordenador, enfrentou, literalmente, uma prova de fogo. A missa ainda não havia terminado, quando rolos de fumaça encheram os céus de apreensão. A Casa Chamma estava sendo consumida por um incêndio monumental. Não havia como passar com a Berlinda pelo “Boulevard” ou pela “15 de Novembro”. Cabia ao coordenador decidir o novo trajeto de emergência. Os Bombeiros sugeriram que o cortejo seguisse pela avenida Portugal e alcançasse a Presidente Vargas pelas ruas do bairro da Campina.
Certo de aquela não era a melhor alternativa, fez valer sua autoridade e conduziu, pessoalmente, a romaria pela “João Alfredo”. “Parecia um milagre. Estava tudo limpo e não havia aglomeração. Por onde nós passávamos, todo mundo ajudava. Me lembro de um carro estacionado em lugar impróprio, mas a guarda, coordenada pelo José Luiz Toscano, agiu depressa. O carro foi levado pelos Guardas de Nossa Senhora para cima da calçada e a romaria pode passar”, recordava, triunfante. João, o nosso João, respirou aliviado e chegou à Praça santuário como um verdadeiro líder.
Foi do amor por Nossa Senhora de Nazaré que conseguiu extrair forças para suportar aquela que considerava a maior injustiça sofrida, ao longo da vida. Às vésperas do Círio de 2017, o Conselho Nacional de Justiça o inocentou de uma leviana acusação de corrupção. Reconduzido ao Tribunal, o desembargador Maroja concluiu seu tempo profissional com a cabeça erguida. Como justa homenagem, assumiu a presidência da corte no dia em que se aposentou. Maroja, o nosso João, morreu com as mãos limpas e a dignidade restaurada.
A notícia de sua morte, na manhã deste domingo, encheu a cidade de tristeza. Ontem, os médicos nos haviam enchido de esperanças. O AVC era do tipo isquêmico e não seria necessário operá-lo. Ele começaria o chamado desmame e se preparava para ser desintubado. Mais uma vez, assim achávamos, assim nos iludíamos, assim nos confortávamos, que o nosso João daria a volta por cima e retornaria para nós. Não foi assim.
No Dia do Senhor, Deus veio buscá-lo para assistir à missa no Céu. Com certeza foi conduzido por sua Mãe, por nossa Mãe, Nossa Senhora de Nazaré, para a cerimônia e sentou no lugar destinado aos justos e aos bons.

A morte do João, do nosso João, não foi apenas uma perda. Foi uma devastação.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: José Moraes — Begônias na Cadeira, 2001. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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