Eneida, nosso pierrô eternamente em flor
João Carlos Pereira
Ela se chamava Eneida de Villas Boas Costa. Villas Boas da mãe; Costa, do pai. Com o casamento, ganhou o de Moraes. Passou a ser Eneida Villas Boas Costa de Moraes. Como faltava a esse nome tão cumprido e pomposo a palavra liberdade, sua melhor e mais completa tradução, livrou-se de todos eles e passou a ser apenas Eneida. Dizia que não podia comprometer a família pelas loucuras que fizesse. Sendo somente Eneida, não repartiria responsabilidades de seus atos com terceiros. Assim, Eneida virou Eneida, um nome que soava como música aos meus ouvidos de menino.
Em casa, meu pai falava dela com carinho, admiração, respeito e intimidade. Frequentava, quando viajava para o Rio, seu apartamento, em Copacabana, onde estive em 2006, motivado por mera curiosidade de jornalista. Havia ido ao Museu da Imagem e do Som para buscar uma cópia do depoimento que ela deu a Dalcídio Jurandir e Miécio Tatti, no dia 15 de 1967. Como faltou no prédio, o encontro foi interrompido e remarcado para 22 de fevereiro. A entrevista, até então inédita, foi transcrita e publicada em livro pela Universidade da Amazônia. A edição inclui um CD, onde está registrada a reunião. Ficou mais precioso, porque se pode ouvir a voz de dois dos maiores escritores paraenses do século XX.
Cheguei ao prédio no final da tarde e o Síndico foi gentil. Me levou até o apartamento 201 e fiz algumas fotos. A estrutura original estava preservada, mas não restava nada que testemunhasse a passagem de Eneida por ali. Bem que tentei entrar em sintonia com o etéreo para captar alguma energia. Ou não havia mais nada no ar, ou eu estava num dia ruim. Não senti nada. O Síndico, cujo nome deveria ter anotado, se lembrava dela. Na saída, uma mulher antipática, moradora de um apartamento no primeiro andar, colocou sua cara feia na janela e perguntou a razão de estar fazendo imagens da fachada do imóvel. Expliquei que era para um livro e ela reagiu, querendo saber se renderia alguma coisa para o condomínio. Tentei dizer que renderia prestígio, mas a criatura não entenderia. Com certeza nunca foi convidada para alguma festa na casa da nossa Eneida. Sua ranhetice não seria bem-vinda, num lugar onde a alegria dominava os ambientes.
As noitadas, como se dizia antigamente, eram de longuíssimo curso, no apartamento 201. Meu pai me contava que, muitas vezes, o dia raiava e ninguém ia embora. Cantava-se, bebia-se, comia-se, amava-se naquela unidade do prédio 1130, da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Se vivêssemos num país onde a memória e a cultura valessem alguma coisa, lá deveria haver uma plaquinha indicando que Eneida morou naquele endereço. No hotel onde gosto de ficar, em Paris, há, logo na entrada, o registro, em mármore, da passagem de André Breton (em 1921) e de Paul Gauguin (1891). Isso empresta dignidade ao local.
Para atentar sua amiga, meu pai dizia: “Eneida, se tu gostas tanto do comunismo, por que não te mudas para a União Soviética de vez?”. Ela respondia, cheia de convicção: “Joel, nosso dever é implantar o regime aqui, para ajudar o Brasil a se tornar um país mais justo”. Tanto meu pai como Eneida eram bons de copo e de papo. Um dia ele me confessou: “eu e a Eneida nos queríamos tanto bem, que não sei como não aconteceu nada entre nós.” Eu percebia um certo arrependimento nessa frase. Nem que fosse por pouco tempo, adoraria ter sido enteado da cronista. Esse “parentesco” iria para meu currículo. Com glória e honra, como ela gostava de dizer, quando anunciava que havia nascido em Belém.
Como, na semana passada, falei de Mário Cuia, o eterno Rei Momo, e, na, segunda-feira, mostrei a face carnavalesca do maestro Waldemar Henrique, reservei, para hoje e para sexta, o pensamento momesco, digamos assim, de Eneida, o nosso lindo pierrô. Dividi a crônica em duas partes para não ficar cansativo.
Apaixonada pelas coisas e pelas causas do povo, dizia que não nasceu para ser espectadora da vida, e, sim, “para tomar parte no negócio”. Por isso amava tanto o carnaval, a única festa que considerava verdadeiramente popular. Não gostava do Natal por não ter nada de brasileiro e porque achava o papai Noel um “imbecil” (aqui para nós, eu também acho). O São João, segundo acreditava, havia ficado restrito às cidades pequenas. Restava o carnaval. Eneida assegurava que, enquanto existisse um carioca, o carnaval estaria salvo. Não foi por outra razão, a não ser pelo enorme amor que nutria por essa manifestação, que escreveu a “História do carnaval carioca”, imprescindível fonte de pesquisa, há muito totalmente esgotada.
Como acreditava que as tradições deveriam evoluir, não podia imaginar o carnaval como tempo de seus avós. Nunca usaria anquinha ou espartilho, mas também não concordava com o fim dos “ranchos”, que considerava a melhor expressão do carnaval no sentido folclórico.
Os ranchos carnavalescos preservavam a grande influência dos folguedos negros, como os Cucumbis e as Congadas, que chegaram ao Brasil trazidos pelos escravos africanos. Aqui, misturaram-se às tradições festivas populares nascidas em Portugal. A chamada classe média, no tempo em que ela podia ser identificada a olho nu, brincava nos ranchos. Os mais pobres saíam nas escolas de sambas. Belém teve o seu rancho, chamado de “Não posso me amofiná”, que virou Escola de Samba, mas manteve a tradição no nome. Foram os ranchos que introduziram no carnaval carioca novidades como o enredo, personagens como o casal de mestre-sala e porta-bandeira e o uso de instrumentos de cordas e de sopro. Era isso que Eneida defendia.
Embora não nutrisse nenhum afeto pelo passado e o acusasse de ser o responsável pelo que de ruim havia no presente, lutava pelos ranchos. Mas Eneida era uma caixinha de surpresas. Jamais aceitou que se transformasse o carnaval em um evento turístico para estrangeiros. O negócio, segundo ela, era fazer carnaval brasileiro para os brasileiros. Na sua opinião de jornalista, que também era formada em odontologia, turista branquelo não gastava dinheiro com a folia. Reclamava da paparicagem com os gringos e assegurava que os brasileiros eram vistos como gente feia. Para os de fora, indicava o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, “não sei o quê…Tá-tá-tá…”. Carnaval, não.
A historiadora do carnaval carioca sabia identificar as diferenças sócio-econômicas da festa. Na Zona Sul, os moradores faziam uma vaquinha, construiam um palanque e dançavam lá dentro, como se fossem coretos. Na Zona Norte residia a tradição, o verdadeiro carnaval de rua, com casais fantasiados de caveira, por exemplo, namorando. Para ela, o subúrbio mantinha as origens do carnaval. Em 1964 foi até Madureira e ficou maravilhada com o que viu. Mesmo assim, sabia que a lei da vida era evoluir, progredir, sem perder os laços com o passado.
Eneida previu que o carnaval e o Jogo do Bicho jamais iriam acabar. Hoje, o Bicho sustenta o carnaval e ajudou a transformá-lo naquilo que a televisão chama de “maior espetáculo da terra”. Sinceramente, não sei o que diria do carnaval brasileiro, dos desfiles de São Paulo, do Rio e de todas as capitais, que tentam copiar o que se faz lá fora, sobretudo as escolas pobrezinhas, incapazes de manter sua identidade. Talvez detestasse, mas seguramente se agradaria do que, no interior, se manteve. Tenho para mim que ia amar os cabeçudos e o Pavulagem.
Não faço a menor idéia do que diria a respeito da Aldeia Cabana, construída no seu amado bairro da Pedreira, que batizou de “do samba e do amor”. Para ela, que lutava com dificuldade para se manter e sempre trabalhou, sair do centro para o subúrbio era caro. Um saco de confete custava os olhos da cara. De lança-perfume não gostava, porque o cheiro de éter não lhe fazia bem. Mesmo assim, não reclamava e ainda mangava dos que queriam saber a razão de o Brasil importar tanto éter.
Sempre à frente de seu tempo, defendia os direitos dos homossexuais fazerem o que quisessem na folia, mas reclamava das fantasias de luxo, porque elas impediam que o brincante dançasse o carnaval, tamanho o volume de pedrarias.
Respeitada e querida em todo o Brasil, Eneida criou o baile dos Pierrôs. Sobre isso e muitas outras coisas que dizia do carnaval, falarei na sexta-feira.

A lembrança da escritora que não conheci, nascida em 1904 e morta em 1971, é algo que me acompanha e me fascina. Gostaria de ter sido seu amigo e de ter podido acompanhar meu pai nos encontros que ele classificava de “memoráveis”, em sua casa.
A melhor imagem que trago de Eneida foi construída pela voz de meu pai e pelos versos de João de Jesus Paes Loureiro:
Eneida sempre viva
Eneida sempre em flor
Eneida sempre livre
Eneida sempre amor
Seu corpo está sepultado num túmulo de mármore branco, no cemitério de Santa Isabel, e pode ser visto da rua, tão próximo está do gradil da “José Bonifácio”. Uma vez fui visitá-lo e me pareceu abandonado. Sobre a lápide branca está escrito apenas Eneida, com a reprodução de sua letra.
No antigo sebo do Dudu, a Livraria Econômica, de Eduardo Failache, encontrei um de seus livros com autógrafo escrito a caneta. A força de Eneida era tamanha, que por três ou quatro páginas ainda se podia ver a marca da intensidade que imprimia em sua assinatura. Quando olhei o nome Eneida gravado na pedra, tive a impressão que ela mesma o escrevera. Faltou, porém, a inscrição que tanto desejou: “aqui jaz uma mulher que nunca topou chantagem”.
Faltou também a mangueira para fazer-lhe sombra e representar o amor que tinha por Belém. A única vontade respeitada foi a ala do campo santo em que sonhou repousar. O lado esquerdo. Comunista, se tivesse sido enterrada na direita, era capaz de levantar da tumba e mudar-se para a esquerda, aninhando-se em qualquer cova.
Eneida ara assim. Amava tanto esta terra e dela recebeu tão pouco. Há apenas uma praça com seu nome. Por mim, trocava o nome de Pedro Miranda, a maior avenida do bairro da Pedreira, pelo de Eneida. Seria avenida cronista Eneida.
Fica a sugestão para algum vereador apresentar à Câmara. Quem fizer, terá meu voto garantido.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Heitor dos Prazeres — Carnaval, s/d.
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