Joio e Trigo — Duas Bandeiras
Cyril Suresh, SJ
Transposição evangélica no simbolismo do “Joio e Trigo” e das duas bandeiras dos Exercícios Espirituais [136-148]
Introdução
O ser humano é essencialmente um buscador. O seu coração intensifica sua busca no momento difícil como agora no tempo confinado por pandemia. O discurso bíblico das parábolas, especialmente do trecho de Mateus (13,24-30), tem uma mistagogia que desperta o coração dos buscadores crentes para um verdadeiro sentido do Reino de Deus. Certamente, não tem uma única resposta, mas múltiplas buscas em cada parábola dependendo do tempo e do contexto no qual o coração humano espreita suas interrogações existenciais acreditando na sabedoria da parábola dinâmica. Quem busca encontra.
Santo Inácio de Loyola (1491-1556) nos seus Exercícios Espirituais [EE] propõe uma meditação paradigmática das Duas Bandeiras. Uma comparação entre a parábola de Mateus (Mt 13,24-30) e a meditação inaciana [EE 136-148] poderia nos ajudar aprofundar a nossa busca de ser trigo no celeiro de Deus e de ser soldado de Cristo combatendo contra o joio e contra o maligno no tempo atual. Na ótica semítica, Deus é um só, criador do céu e da terra (Gn 1,1) enquanto as opções humanas na sua liberdade interior diante de único Deus são duas, por exemplo, favor ou contra, vida ou morte, bem ou mal e assim por diante. Ser filho do Reino ou ser filho do maligno é opção livre que influencia as atitudes do ser humano que procura ser um ou outro no seu diálogo ininterrupto. Quem procura acha.

O Combate entre Trigo e Joio
Há uma afirmação primordial dentro da pergunta retórica, “Senhor, não semeaste boa semente no campo (Mt13,27)? A semente que foi lançado no campo é muito boa. No princípio, o feito de Deus era muito bom (Gn 1,10.12.18.21.25.31). Uns dos prenúncios de João Batista disse que Jesus terá na mão uma pá e vai limpar sua eira recolhendo seu trigo no celeiro (Mt 3,12). A palavra de Deus pode ser também uma pá que lavra e capaz de cultivar o terreno do coração sedento. Salmista registra uma sede pela busca ardente- “minha alma tem sede de ti, o meu Deus” (Sl 63,2).
O agricultor que trabalha arduamente no cultivo não vai cansar da sua busca pelos grãos íntegros ou pelas sementes sadias no meio daqueles que estão enfraquecidos, divididos e distorcidos como os joios. Os ceifadores são empregados no tempo atual (Mt 13,28) e anjos nos tempos finais (Mt 13,39). O semeador é o Filho do Homem (Mt 13,37) aquele que semeia as boas sementes no campo. O inimigo é o Diabo (Mt 13,39) aquele que semeia na noite os joios no meio do trigo e vai embora (Mt 13,25). Os trigos amadurecidos são grãos bons e pertencem ao Reino de Deus enquanto os joios são maus e pertencem ao maligno (Mt 13,38).
Quase sempre no campo crescem concomitantemente os joios e os trigos e produzem seus respectivos grãos sadios e fracos, ficando lado a lado. O gadanho é indispensável na hora da colheita para cortar, separar, lavrar, escavar e coletar os grãos no celeiro. Não é incomum perceber que os agricultores desejem arrancar o joio antes do tempo da colheita. No entanto, ao dizer “deixar crescer um (joio) e outro (trigo) até o tempo da colheita (Mt 13,30)”, Jesus provoca os seus ouvintes com os seguintes insights:
- A sensibilidade de respeitar o trigo até seu tempo de amadurecimento total é vital.
- Existe um espaço de liberdade tanto para joio quanto para trigo na mesma terra.
- O ato de semear e de ceifar é determinante na terra de cultivo.
- A paciência até o fim evita qualquer desastre de perder a colheita.
- É necessário possuir discernimento para queimar o joio e para recolher o trigo.
- O que é queimado primeiro poderia tornar-se fertilizante àquele que é recolhido depois.
- O tempo de crescimento é decisivamente superior ao espaço de ocupação.
- A qualidade do trigo que chega ao celeiro é mais importante que a quantidade de grãos que foi semeado no campo.
- Existe uma inter-relação multicultural entre o dono, os empregados, o joio, o trigo e o campo de cultivo.
- O dono do celeiro tem sua autonomia e sua palavra final.
O mundo moderno está repleto de ódio, polarização, exclusão e eliminação. Desta cultura de descarte e de cancelamento, a exortação apostólica do Papa Francisco, Evangeli Gaudium (217-237), vem propondo um verdadeiro caminho para a paz no mundo inteiro através dos quatro binômios de diálogo cuidadoso entre tempo e espaço, unidade e conflito, realidade e ideia, todo e parte.
- O tempo é superior ao espaço (222).
- A unidade prevalece sobre o conflito (226).
- A realidade é mais importante que a ideia (231).
- O todo é maior do que a parte (234).
Em busca de uma compreensão maior destes princípios, é importante trabalhar em prol dos primeiros termos dos binômios — o tempo, a unidade, a realidade e o todo que vão subordinando os seus correlativos — o espaço, o conflito, a ideia e a parte. Ou seja, uma prioridade de escolhas e trabalhos pode ser aplicada também nesta parábola de Mateus (Mt 13,24-30). Por exemplo, o tempo da colheita madura a longo prazo é mais importante que um resultado prematuro a curto prazo. O conjunto orgânico do cultivo é mais belo que seu fragmento com separação de trigos e joios. A prática de semear, de adubar, de colher e de guardar o trigo no celeiro é mais eficiente que sua retórica de teoria e ideologia. A colheita dos grãos de todos os alimentos em sua totalidade é mais gratificante que a colheita parcial.
Nessa visão mais ampla de semear as sementes boas e ceifar os grãos maduros numa cultura global de paz, saúde e alegria, é necessário fazer questionamento a respeito do significado de ser trigo e de ser joio no mundo atual. O que é um joio? Uma resposta normativa pode ser uma erva daninha e improdutiva; ou uma pessoa ruim entre pessoas boas, no sentido figurado. Uma perspectiva transformadora vai além das normas estabelecidas numa reposta ideológica de compartimentos.
O joio é uma planta cujas virtudes ainda não foram descobertas. O que você descobre na ação fala mais alto que o que você diz no discurso. [ Ralph Waldo Emerson (1803-1882) ]
A transposição evangélica está na descoberta das virtudes no joio a fim de transformar-se um trigo no celeiro de Deus. A longevidade da vida ocupando apenas um espaço inútil não importa, mas sim, a profundidade da vida num tempo fecundo e frutífero. O tempo da colheita é o tempo káiros e não crônos. É tempo de aperto. É tempo de confinamento. É tempo de Deus. Por isso, procurar descobrir a potencialidade do joio neste tempo de Deus é uma vocação santificante. Cada minuto investido na impaciência e no impulso para arrancar o joio é equivalente a uma perda de sessenta segundos de felicidade na vida deposta para ceifar o trigo ao dono do celeiro. Ser joio a despeito de trigo significa ser filho do maligno e ser arrancado e queimado no fogo. Ser trigo a despeito de joio significa ser filho do Reino e ser recolhido no celeiro de Deus. Os grãos guardados no celeiro de Deus é alimento que sacia os famintos e remédio que cura as feridas da humanidade.
O Combate entre Cristo e Lúcifer
Viver sem fazer escolhas é muito difícil. E cada vez mais difícil é viver bem fazendo as escolhas certas. A meditação categórica das duas bandeiras, como foi colocada por Santo Inácio nos Exercícios Espirituais [136-148] provoca nos exercitantes atentos um discernimento prático, uma experiência espiritual, um conhecimento sólido e um fundamento teológico.
Quais são as duas bandeiras? Assim como o simbolismo do trigo e joio que manifesta dois estados da vida cristã, também são as duas bandeiras, a de Cristo e a de Lúcifer. O primeiro é identificado como o supremo chefe dos bons, Nosso Senhor Jesus Cristo na região de Jerusalém [138]. O segundo é identificado como o chefe dos inimigos, Lúcifer inimigo mortal de nossa natureza humana na região da Babilônia.
De um lado de Lúcifer existe um campo enorme na região de Babilônia, um trono de fogo e fumaça, um aspecto horrendo e espantoso [140]. Os seus servos, demônios, espalham pelo mundo inteiro a ganância de riquezas, a vaidade do mundo, a grande soberba para induzir os vícios [142]. A figura do inimigo na parábola é o maligno e o diabo; ele vem durante a noite semeando o joio, sem a permissão do dono do campo (cf. Mt 13,25.39). O diabo não tem lugar nenhum na hora da colheita, mas fica misteriosamente no escuro.
De outro lado de Cristo existe um vasto campo na região de Jerusalém, um lugar humilde, belo e gracioso [144]. Os seus servos e amigos, apóstolos e discípulos, difundem o ensinamento sagrado, aquilo que é diametralmente oposto ao do Lúcifer, a pobreza espiritual e material, desonras e desprezos, infâmia e humildade que levem a todas as outras virtudes e os conselhos evangélicos [146]. A figura do Cristo na parábola é o semeador e o Filho do Homem; ele é aquele que semeia a boa semente (Mt 13,37.24). Quem recolhe o trigo no tempo da colheita são os ceifadores e os anjos (Mt 13,39). Obviamente a colheita é feita na ausência de escuridão.
O combate entre Cristo e Lúcifer (satanás) não acontece entre dois agrupamentos separados, bons e maus, fora do ser humano, mas dentro do coração humano, entre amigo e inimigo da nossa natureza humana. Assim como o campo de cultivo (trigo e joio) é o mundo único na parábola (Mt 13,38), também o campo da batalha com suas bandeiras (Cristo e Lúcifer) é o coração único do ser humano. Existem neste combate os princípios antagônicos em três graus condescendentes:
- Pobreza contra riqueza
- Vergonha/pequenez contra vanglória
- Humildade contra soberba/orgulho
Uma vez que um grão de trigo foi arremessado pela mão do semeador, dissociando dele pelo abandono (sem dono), pela pobreza (sem poder de resistir), pela pequenez (confinamento social), pela quietude (silêncio solitário), o grão penetra o húmus da terra no campo. Ele começa quebrar-se para ser nutrido pelas virtudes da terra que o acolhe por dentro. Semelhantemente, o chamamento que vem na exclamação ruidosa do Lúcifer e que vem na proclamação silenciosa do Cristo vai cair humildemente nos ouvidos do ser humano que escutam a fim de obedecer (descer) de coração. O seguimento de Cristo é enraizado na autonomia do coração humano onde a transposição evangélica acontece pelas virtudes como a pobreza despojada do confinamento, a desonra da autonegação e a humildade da entrega total.
No Celeiro de Deus os grãos são alimentos sagrados
Embora a linguagem e as imagens apresentadas nas duas bandeiras sejam típicas da época medieval, seu modo de comparar contém um método mistagógico ajudando os exercitantes dedicados a fazer eleição e escolha dentro da ética evangélica hoje no seu tempo atual. Ainda que as imagens da parábola sejam literalmente associadas ao campo de agricultura, seu apelo universal é abrangente sem fronteiras de religião, raça, etnia etc.
O comando imperativo de Jesus, “deixa os grãos (trigo e joio) crescer um e outro até a colheita” (Mt 13,30) manifesta a paciência divina, a esperança cristã, o afeto gentil e a humanização tolerante que se encaminham para o tempo fim e para o celeiro (Mt 13,30). Os empregados, os ceifadores, junto com seu proprietário devem crescer em magnanimidade de Deus com cooperação, paciência, tolerância, obediência etc. Pois o dono do celeiro é Deus que fará a colheita no fim do tempo. A onipotência dele pode frutificar ainda. A onisciência tem conhecimento da vida verdadeira e não impetuosa. A onipresença dele vai acompanhar cada grão para ser recolhido no seu celeiro. O que Deus guarda no seu celeiro que seja debaixo da terra ou acima dela deve ser um alimento bom e sagrado saciando os famintos na eternidade.
Surpreendentemente Jesus por analogia é aquele grão santificante que foi fecundamente semeado na terra. Por conseguinte, a sua missão encarnada na terra fez ele se entregar plenamente à vontade de Deus resistindo toda força do inimigo (Lúcifer). Ele amou os seus discípulos até o fim (Jo 13,1). Na sua paixão, ele se fez o alimento eucarístico no pão de trigo consagrado. Ele foi preso e confinado. Foi esmagado e crucificado. Foi morto e sepultado. Foi ressuscitado e recolhido no celeiro de Deus uma vez para sempre. A sabedoria, a ciência e a riqueza de Deus são insondáveis (Rm 11,33). Como era no princípio (Gn 1,1; Jo 1,1), tudo é dele, por ele e para ele. A ele seja glória pelos séculos sem fim. Amém (Rm 11,36).
Cyril Suresh Periyasamy é padre jesuíta, vigário da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em João Pessoa (PB). Ensina Sagradas Escrituras no Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Nasceu na Índia, onde graduou-se em matemática e fez pós-graduação em filosofia. No Brasil, graduou-se em teologia na Faculdade dos Jesuítas de Belo Horizonte, onde fez mestrado em teologia bíblica. [saiba mais]
Imagem: Van Gogh — Camponesa amarrando feixes, 1889. Van Gogh Museum.
Ignatiana Visualizar tudo →
IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.