Em nome de nossa ignorância e de nosso atraso, perdoai

Diário de um desespero – ou quase – LXXV

João Carlos Pereira

Até ontem, eu não sabia que ficar apoiado sobre um dos joelhos havia se transformado em sinal de resistência e de protesto contra o racismo. Esta crônica, a partir de agora, está ajoelhada desse modo e assim ficarão, ela e as próximas, mesmo que não tratem do tema. O gesto evoca a posição em que o policial matou George Floyd por asfixia. Ao agir assim, as pessoas repelem os sentimentos que levaram um branco a matar um negro. Esta crônica está de joelhos e deste modo prosseguirá, como forma de se manifestar indignada e de rezar.

Nos Estados Unidos, as pessoas sérias não brincam com a questão do racismo. O sul, área onde estão a Disneylândia e a origem da Coca-Cola, foi, no passado envergonhado, uma região terrivelmente discriminadora. Em Atlanta, por exemplo, se um negro viesse pela calçada e um branco caminhasse no sentido contrário, era obrigado a descer para desviar-se. Nos ônibus, negros tinham de ceder lugar para os brancos. A coisa era tão ruim, que, se um branco estivesse numa sacada, visse um negro passar e desejasse urinar sobre ele, nada lhe aconteceria. Felizmente essas práticas foram extintas, mas o racismo prosseguiu. George Floyd não foi morto por outra razão a não ser pela cor de sua pele.

Por ele, esta crônica fica de joelhos.

No Brasil, sem escravos, oficialmente, é claro, há apenas 132 anos, o problema não é diferente. Vira-e-mexe a televisão mostra práticas racistas. A mais recente – e das mais graves – veio do Presidente da Fundação Palmares, negro como aquele que emprestou seu nome a uma instituição que, teoricamente, deveria agir contra o preconceito, chamou seus irmãos de cor de “escória maldita”. Em honra dessa “escória maldita”, constituída pelos que tratou, desdenhosamente, de “macumbeiros”, esta crônica continua de joelhos.

Ninguém venha querer tapar o sol com a peneira e dizer que o país se livrou da praga do racismo. O sentimento corre como lama pelos esgotos da sociedade e casa grande ainda está bem separada da senzala. Justificar a segregação racial, apontando como causa a proximidade histórica com a escravidão, é algo tão grave e injustificável, que sequer pode ser usado como atenuante. Em repúdio a esse argumento fétido, a crônica se mantém de joelhos presos ao chão.

Há muito tempo, conheci uma senhora, em São Paulo, branca, loira natural, feições finíssimas, casada com um negro. Uma noite, eles foram ao cinema e, sem querer, na hora em se dirigiam aos seus lugares, o negro pisou, sem querer, o pé de um branco. Nem teve tempo de se desculpar, quando ouviu a ofensa: “não pisa no meu pé, preto safado”. Nessa hora, a senhora percebeu que o companheiro era um homem de cor. Até então, segundo contou num programa de televisão, jamais havia reparado. Pelo casal, esta a crônica fica em pé.

Numa época recuada e perdida, Maria de Belém e Maria Ruth Menezes, hoje largas saudades, montavam o mais bonito presépio doméstico da cidade, presépio-raiz, sem tecnologia, papai Noel, casinhas, luzes ou qualquer peça vinda do exterior, apenas a cena do nascimento de Jesus e papel-pedra, com figuras da Sagrada Família, dos reis magos, de pastores, além de animais, inclusive patinhos que “nadavam” sobre um espelhinho transformado em lâmina d’água. Os muitos amigos da família chegavam a marcar hora para ver o presépio.

Uma vez, um meninozinho debruçou-se sobre o que hoje se chamaria de “instalação” e começou a identificar as figurinhas, valendo-se da sua língua do X. Com o dedinho em riste, mostrava: XãoXosé, NoxaXenhora, menino Xesus, anxinho…Quando viu o rei mago negro, hesitou. Calou-se, assustado. O que estaria fazendo ali aquela criatura estranha, intrometida no meio dos brancos? A mãe, toda convencida da sabedoria da criança, percebendo que vacilava, perguntou quem era. Cheio de coragem, repetiu o que, talvez, escutasse em casa: “é o peto macumbêro”. Pelo “pêto macumbêro”, a crônica permanece na posição de protesto.

Além de preto, o rei mago era macumbeiro. E por ser macumbeiro, deveria ser preto. A carga de preconceito à que aquela criança fora ser submetida devia ser enorme. Por essa cena, a crônica esfola o joelho no chão. Pelos macumbeiros, os músicos tocadores da macumba, um tambor de vários tamanhos, ao ritmo do qual as entidades chegam aos terreiros; pelos umbandistas, pelos pais e mães de santo, brancos, pardos ou negros, pelos cultos de matriz africana esta crônica fica de pé e faz respeitosa reverência, evocando a liberdade da prática religiosa e o amor à cultura afro.

O preconceito é histórico, cruel, insensível e bárbaro. Consta que, quando D. João VI viu um negro na praia do Rio, pela primeira vez, mandou escová-lo à exaustão, para tirar a “sujeira” da pele. Lamartine Babo deixou claro que só queria o amor da mulata, porque a cor não pegava. O país cantava (e canta) isso a plenos pulmões, no carnaval, achando que era normal. O racismo entranhou-se tão profundamente nas veias brasileiras, a ponto de um negro chamar seus irmãos de “escória maldita”. Essa marchinha deveria ser proibida de tocar. Por ela, a crônica se retira, envergonhada.

Se o propósito oculto do corona vírus foi limpar a sociedade e permitir que um mundo novo surja, lamento dizer que o bichinho perdeu seu tempo. Por que ele não atacou o policial branco – ele, sim, escória maldita – antes que tivesse tempo de cumpriro gesto que o jogou na galeria dos abomináveis? Teria sido para mostrar que os Estados Unidos estão “evoluindo” nesse sentido, tamanho o volume de protestos? Muito estranha essa forma de revelar-se renovadora da espécie.

E aquela mulher que deixou o pequeno Miguel Otávio Santana da Silva brincar sozinho no elevador e foi fazer as unhas, desprezando o risco que o matou, por que essa infeliz não pegou a covid mortal antes? Se a criança fosse branquinha, filha da amiga, teria sido largada no elevador para cair do nono andar? E se a cena fosse invertida: em vez do menino, fosse a filha da patroa, aos cuidados da empregada? O que diria a justiça dos brancos e poderosos? O valor da fiança, vinte mil reais, é a mais irrisória e humilhante reparação à vida e retrato de um Brasil injusto. Pelo anjinho preto, como os de mestre Ataíde, nos templos barrocos mineiros, e os que ornamentam os altares laterais da igreja de Nossa Senhora do Rosário da Campina dos Homens Pretos, em Belém, esta crônica não se levantará jamais

O Brasil é uma terra cheia de perguntas sem respostas, de preconceitos insuportáveis contra negros, gays, mulheres e pobres, gordos, desajustados, feios, que enojam a pátria idealizada.

Não basta combater o preconceito de cor ou qualquer que seja sua configuração. É preciso que se seja anti-tudo que agrida a dignidade humana.

No Brasil, correndo paralelo ao rio de lama do preconceito, há outro duto por onde passam, cristalinamente, o apreço pelo corrupção, a estima pela superficialidade, o desprezo pelo estudo, o aplauso à vulgaridade, o elogio à ignorância, o estímulo à malandragem, o culto a um deus inexistente, que só pensa em dinheiro e prosperidade, o descaso aos valores mais caros aos seres humanos, o que, necessariamente, não quer dizer aos pregados pela terrível TFP, e, finalmente, o amor ao crime, à bandidagem e ao ganho fácil por meios ilícitos, sejam eles quais forem.

Acho que nunca antes me manifestei de forma tão revoltada, mas estou de tal modo cansado disso tudo, que apertei aquele botão simbolicamente instalado na barriga e entrei no modo lixe-se, para não usar a palavra adequada. Infelizmente, a humanidade já chegou à casa do sem-jeito. Nem dez pandemias, uma atrás da outra, vão consertar o pau que nasceu torto.

Por tudo isso, esta crônica nunca mais se colocará de pé.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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