A menina seca atrás da porta, em Santo Alexandre

Diário de um desespero – ou quase – XLVI

João Carlos Pereira

Dos muitos medos que trago da infância, um está ligado diretamente à Igreja de Santo Alexandre, no meu querido bairro da Cidade Velha. Não sei exatamente em que ano ela foi fechada ao público, mas deve ter sido pelos idos de 1940, ou um pouco antes. Isso não importa muito, pelo menos agora. O que conta é que, depois de ter ficado interditada por décadas, o arquiteto e ex-secretário de Cultura Paulo Chaves a restaurou e reabriu-a ao público, integrando o complexo que reúne Galeria de Arte, um jardim dedicado ao padre Vieira, o Museu de Arte Sacra, sua administração e espaço de restauro. Hoje, tudo isso é uma das pérolas da cidade. Não há turista que venha aqui e deixe de visitá-los.

Eu era pequeno e, morador do bairro, ia brincar nas praças próximas à minha casa. Ainda lembro, e preciso escrever isso antes que esqueça, porque o tempo vai comendo a memória da gente pelas bordas, que achava o máximo subir nos leões de pedra do monumento da praça D. Pedro II e fingir que os submetia à minha vontade, com a força de um Hércules. O mesmo fazia, quando saía das matinês do cinema Olímpia. Até o ônibus passar, eu brincava sobre uma onça entalhada em pedra, que um dia, como tudo aqui em Belém, sumiu, na base do ninguém sabe, ninguém viu. Mas o problema era Santo Alexandre, aquela igreja sempre fechada, que me apavorava.

Falavam em casa, e eu, que sempre adorei ficar escutando conversa de adulto, justamente porque era proibido e toda informação era mal elaborada, ouvi, sem querer, a história da menina que secou, no exato momento em que tentou agredir a mãe, com uma vassoura, tamanha sexta-feira da Paixão. Como um castigo divino, um raio paralisante caiu-lhe sobre a cabeça e ela murchou. Mumificou-se todinha. Sem poder sepultar a filha, porque não havia como ajeitá-la no caixão, já que a cólera divina interrompeu o gesto tresloucado, no dia mais triste do ano, o jeito foi entregá-la à igreja, para que, num solo sagrado, pudesse pagar pelo pecado.

Foi na Cidade Velha que ouvi os primeiros casos escabrosos da minha vida e vi cenas que me marcam até hoje. A imagem de Nossa Senhora das Dores, que sai na Procissão do Encontro, era tão real, tão real, que, para mim, parecia estar viva. A face de dor, sofrimento, angústia, desamparo, solidão, amargura, alma trespassada, construiu em mim os primeiros contornos da morte anunciada. Eu achava que, quem tivesse uma morte na família, padeceria como Ela. Só encontrei maior expressão de mãe desolada, na arte brasileira, numa escultura de Aleijadinho sobre o mesmo momento. A peça é tão linda, que foi escolhida para representar o Brasil na mostra universal de Atlanta, nos Estados Unidos, por ocasião das Olimpíadas, no tórrido verão de 1996. Nem aqui faz tanto calor como naquela cidade, onde, quando esquenta, parece que vai explodir a caldeira que leva fogo e quentura para o inferno. A Senhora das Dores é tão linda, tão perfeita, que os curadores colocaram-na sozinha, numa sala especial, entre as maiores preciosidades da história da arte..

Tirando a santinha de roca, com seu vestidão e véu sombrios, outras práticas me perseguiam, como almas penadas em busca de paz. Cobrir com pano roxo os santos das igrejas (mesma tonalidade da cortina que, naquele tempo, as funerárias instalavam, provisoriamente, nas casas onde eram realizados velórios), não varrer casa na sexta-feira Santa, não falar alto, o rádio ligado baixinho, apenas com programação de música clássica e, ao meio-dia, homenagem aos radialistas mortos, na PRC-5, o jejum obedecido com rigor, sem chance para uma brincadeirinha, porque tudo era uma ofensa ao Senhor agonizante. Nas três horas santas, meu medo era tamanho, que até respirar, na minha ingenuidade, seria um desrespeito a alguém que estava morrendo e eu nem imaginava quem fosse.

No catolicismo antigo, qualquer mínimo gesto, contra a natureza humana, ou a seu favor, era visto como pecado, coisa suja. Quando eu batia no peito, repetindo a fórmula “minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa”, me perguntava baixinho, para que nem Nosso Senhor escutasse: que culpa, que grande culpa eu tenho. O que fiz de tão ruim? Ele respondia, mas eu não escutava: “Nada João. Deixa de bobagem, meu filho. Vai viver é que é.”

O mesmo catolicismo que me massacrou, oprimiu, encurralou e acusou, décadas depois me redimiu de tudo, me fez desacreditar em uma pilha de bobagens, me obrigou a entender que a única culpa é dizer não a Deus e raspou de mim todas as camadas de preconceito, medinhos, culpas, e ignorância. A igreja católica, para mim, em vez de acusar, defende, liberta, acolhe, perdoa, vai ao encontro, recolhe feridos e junta os cacos. Infelizmente, muitos ainda vão atrás de conversa tola e não buscam a verdadeira religião.

Se não bastassem tantos “nãos”, ainda havia o caso de menina de Santo Alexandre, uma pobre de Cristo condenada a permanecer imóvel, como na brincadeira de “estátua”, com uma vassoura na altura da cabeça, prestes agredir a pobre e indefesa mãe. Eu passava por ali e preferia nem olhar, porque, de repente, se desse uma doida e a múmia se mexesse, saísse correndo atrás de mim, com a vassoura, o que será de mim? O mínimo que eu pensava é que, ao ser tocado pela vassoura, receberia a maldição e ficaria no lugar dela, esperando a chance de contaminar outro vivente.

Dizem que, na floresta, é assim: Matintas não têm a vida eterna, como outas assombrações. Elas morrem. Quando pressentem que a vida já lhes bastou, transferem o carma para alguém que nada teve a ver com o castigo que as transformou na velha mascadora de tabaco e vaga pela noite, assobiando. Deve ser uma versão do mesmo mal que afeta o lobisomem, os zumbis e os vampiros. Quem cair na conversa de uma Matinta em final de carreira será seu sucessor.

Era nisso que eu me baseava, talvez, ainda que não soubesse da existência de Matintas, para achar que eu estava marcado para virar múmia e, sem jamais sequer ter tido peito para levantar a voz para minha mãe, quanto mais uma vassoura, acreditava que havia sido escolhido pelos agentes maléficos para fazer parte do bando. Até hoje não sei como enlouqueci, com tanta culpa e com tanto medo.

A igreja de Santo Alexandre também padecia de uma maldição: a eterna falta de dinheiro para as obras de restauração. Quando a Cúria conseguia que o Iphan mandasse algum recurso para salvá-la, os labirintos da burocracia eram tamanhos e a verba solicitada jamais chegava no tamanho pedido. O que seria necessário para o restauro total, mal dava para o telhado. Mesmo assim, fazia-se o telhado. Novo projeto, novo pedido, longo tempo de espera, até que chegasse mais verba. Nesse tempo, a chuva já havia feito estragos. Mesmo assim, preparava-se o forro. Mais um inverno e o telhado precisava ser reparado. Ficava o templo no meio dessa briga de gato e rato. Telhado pronto, forro caindo; forro refeito, telhado arriando. Enquanto isso, a igreja permanecia fechada, o cupim se banqueteando, sem pressa ou medo de ser incomodado, com os santos jesuíticos e os púlpitos maravilhosos. Isso só acabou porque o projeto Feliz Lusitânia resolveu a parada com rapidez e competência.

Assim que as obras começaram, meu cuidado era com a múmia que, por alguma razão obscura, permanecia em meu imaginário. Ainda que tivesse ido atrás da verdade, um medo encravado na alma ficou lá para sempre. Até hoje, quando entro lá, me preocupo em ver a assombração que nunca existiu.

Quem me livrou da ignorância sobre o ocorrido foi ninguém menos do que D. Alberto Gaudêncio Ramos, sétimo arcebispo de Belém, o único aqui nascido a ocupar a cátedra mais importante da igreja, no Pará, feito Bispo ainda rapaz, com 33 anos (marca nunca superada), homem de muito saber e imensa piedade, meu querido confrade na Academia Paraense de Letra, ao tempo em que atendia na antiga sede Arcebispado.

Não sei como tive coragem, meu Deus, de bater na porta do Arcebispo, do senhor Arcebispo, como dizem a Betânia Fidalgo e a Leomira Affonso, as únicas criaturas que conheço a tratar com tanto respeito o chefe da igreja, pontífice local, para desvendar uma besteira sem tamanho. Pois D. Alberto me atendeu e teve a paciência de explicar tudo, tudinho, derramando um pouco de paz sobre minha alma angustiada. A Clarice Lispector se definia como uma tímida ousada. Eu, apesar de não parecer, também sou tímido e não tenho medo de ousar.

Lembro como se fosse hoje. D. Alberto estava atrás de sua mesa, escrevendo alguma coisa à maquina, e logo me atendeu. Imagino que tenha pensado que era doido, porque só um doido ia interrompê-lo para pedir uma explicação. Eu não sei que pretexto inventei para chegar até ele. Claro que não era falar da menina seca, guardada atrás da porta de Santo Alexandre, mas, no meio da conversa, enfiei a questão. O Arcebispo riu, não sei se de mim, ou da minha bestice, e me contou, divertido: “nunca houve isso. É tudo imaginação do povo. O que eu sei é que uma mocinha, que queria sair do emprego, fugiu da casa dos patrões, encontrou a porta da igreja aberta, entrou correndo, pulou o muro e foi bater na feira do Açaí. De lá pegou um barco para o Marajó e desapareceu.” “E como nasceu a história da menina com a vassoura, a agressão na sexta-feira Santa?”, quis saber. D. Alberto não desejou prolongar mais a conversa e foi definitivo. “Isso eu não sei. Só sei que não é verdade e nunca teve menina seca atrás da porta.” Roma falou, estava falado.

Saí de lá aliviado, mas o medo, como disse, permaneceu encravado. Não sei por que razão, toda vez que vejo a escultura da “Pequena Bailarina de 14 anos”, feita por Edgar Degas, em 1881, com sua saia de renda e seda já bem consumida pelo tempo, me lembro da menina seca. É mais uma das muitas birutices da minha cabeça.

Como toda construção secular, a antiga sede do Arcebispado ainda me amedronta. As salas do Museu de Arte Sacra guardam preciosidades e mistérios. Um dia vou contar a história de uns espíritos que esperam o fechamento das portas para apreciar os santos lá preservados. Eles são tão presentes, que até deixam marcas no chão.

Mas esse fato não é certeza que irei revelar. Talvez.

Belém, 5 maio de 2020

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Igreja de Santo Alexandre, desenho publicado na obra Viagem filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, séc. XVIII.

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