Muitas histórias de passarinho e um poema escrito com pincel

Diário de um desespero – ou quase – XIV

João Carlos Pereira

Jamais pensei que um verbo que julgava inexistente, além de existir, provocaria tantas reações. De ontem para hoje, vários amigos, leitores desta série, me mandaram relatos curiosos e bonitos sobre passarinhar e a decisão de libertar pobres cativos. Como estou passarinhando, que também significa ficar de boa, disponível, vagabundeando – sinônimos dicionarizados e livremente adaptados por mim – achei que valia a pena adiar outros temas e continuar passarinhando, digamos assim, no melhor sentido do termo.

Quem primeiro se manifestou foi meu querido poeta e romancista Edyr Augusto, lembrando que seu pai, o inesquecível Edyr Proença, para mim o eterno Dr. Edyr, com quem tinha o privilégio de conversar, quase todo dia, quando ele dirigia o Museu da Imagem e do Som, adorava passarinhar.  Falamos sobre a prática e chegamos à conclusão de que, antes de ser perversa, era cultural.

As pessoas passarinhavam e não viam problema nisso. Simplesmente pegavam passarinhos para tê-los em casa, como se fosse um gesto de amor. Não era rotina ter “empregada que dormia no emprego”, mulheres que se deitavam e acordavam no local onde trabalhavam e até gostavam, porque encontravam um novo lar, uma outra (ou única) família? Isso era comum, absolutamente normal, natural, cultural. Nem por isso os patrões eram considerados escravagistas ou maus.  Essa categoria, acredito, não existe mais, tanto os “quartos de empregada” foram substituídos por “dependência”, uma vez que ninguém mais dorme neles. Na casa onde eu nasci, havia tanta gente trabalhando para um batalhão (ía de bisavó a bisnetos, minha irmã e eu, no caso), que foi construída uma pequena vila, no imenso quintal, com quartos onde ficavam aqueles que chegavam do interior para se empregar na capital.

Quase no mesmo instante, minha amiga Rejane Barros contou que o Dr. Edyr  lhe havia  prometido de presente um curió. Isso aconteceu pouco antes de sua morte. Nós perdemos uma das melhores criaturas que já passaram por este mundo – quem conheceu Edyr Proença sabe que não há um centímetro de exagero nessa afirmação – e a Rejane ficou sem seu curió. Em nome do bichinho que não perdeu a liberdade, meu muito obrigado.

Pouco depois, o querido Caíto Lanhoso Martins, uma das melhores figuras desta cidade, como diz o Bernardino Santos, escreveu contando que, quando pequeno, na fazendo, ouvia falar em passarinhar, mas a palavra nada tinha a ver com passarinhos, e, sim, com cavalos que, não tão bem domados, durante a cavalgada se assustavam com alguma coisa inofensiva, tipo um graveto no escuro, derrubando o vaqueiro. “Cavalo arisco costuma passarinhar”.  Esse comportamento hostil era curado com peia ou com carinho, caso o susto fosse ocasional, mostrando ao bicho que graveto não era cobra.

Na sequências das mensagens, chegou a da muito querida Jussara Derenji, a mais paraense das orquídeas vindas do sul, para contar que, nas colônias italianas de sua terra, passarinhada é comida feita com passarinhos capturados justamente em caçadas. Assim como os mineiros fazem galinhada, os imigrantes mudam apenas o tamanho da ave. É curioso, mas não há quem coma borracho, que vem a ser filhote de pombo, e ache uma delícia? O mesmo se pode dizer dos deliciosos galetinhos de leite e dos leitõezinhos-bebês, da Bairrada, em Portugal, que a gente devora de joelhos, de tão saborosos. É cultural, repetiria o Edyr Augusto, coberto de razão.

Para aliviar o que chamou de “filme de terror”, narrou a história testemunhada por ela e pelo marido, Jorge, em Salinas. O casal estava no “Bife de Ouro”, quando se aproximou uma vendedora ambulante e um homem, que também almoçava naquele que era o melhor restaurante da cidade, teve um gesto de imensa grandeza. Prefiro deixar a Jussara terminar: “Passou uma senhora vendendo passarinhos presos em gaiolas minúsculas, formando uma espécie de  caixa grande. Ele perguntou quanto era e ela respondeu : qual deles? Todos. Ele disse. Ela ficou meio assustada, mas disse um valor. Ele pagou na hora e foi abrindo as gaiolas. Sem dizer uma palavra. A mulher olhava como se ele fosse louco. Alguns bichinhos se atrapalharam todos, mal se lembravam dessa coisa de voar. Foi muito bonito.”

José Wilson Malheiros, poeta da melhor qualidade e amigo fraterno,  fez a mesma coisa. Uma vez, comprou um curió de um vizinho, para soltá-lo em seguida. O homem ficou furioso e ele, feliz. Toda moeda tem dois lados, felizmente.

Pedro Maia da Conceição disse que, quando menino, gostava de ir a casa do “seu” César olhar os passarinhos que ele criava em gaiolas. O caríssimo Nogueira foi tocado pela palavra, que há muito não via e falou de um outro sentido que os meninos do seu tempo empregavam para o verbo passarinhar. Quando saíam para procurar uma namorada, ou paquerar, como se falava antigamente, estavam “passarinhando”.  Na época em que o arraial de Nazaré ainda era montado na praça Justo Chermont, os rapazes iam lá para “caboquear”, uma versão menos romântica e mais carnal do ingênuo “passarinhar”.

Regina e Cristina Meira, sempre tão doces, mandaram mensagem falando da importância de abrir as gaiolas em que vivemos para tentarmos a difícil liberdade. Roberto Damasceno postou charge em que Tiradentes, um ícone da liberdade dos brasileiros, aparece, já com a corda da forca atada ao pescoço, anunciando seu último desejo: “que os políticos desse país criem vergonha”. Nem que vivesse mais dez vidas, teria visto a vontade derradeira plenamente realizada. A essa, anexou belas imagens de gaiolas vazias, com as portinholas abertas e outro desenho de um passarinho vermelho, engaiolado, conversando com seu amigo, verdinho, livre: “a quarentena tá sendo boa para eles aprenderem como é triste viver isolado e sem liberdade”.

Muitas outras observações chegaram por e-mail, zap ou face, narrando momentos de pura bondade para com as avezinhas. De todas, porém, a mais poética ficou por conta do confrade, filósofo, poeta e amigo Avertano Rocha, que andava atrás de um poema de seu amado Jacques Prévert, francês nascido em 1900 e morto 77 anos depois. 

Prévert  foi um grande poeta popular. A linguagem simples, quase familiar,  o delicado senso de humor, os  hinos que compôs  à liberdade e os jogo com as palavras fizeram dele uma celebridade na área da literatura. Sua poesia, estudada em toda a França, ganhou o mundo e acabou caindo nesta crônica. Vejam a delicadeza dos versos de Prévert, no poema “Para pintar o retrato de um pássaro”, que Avertano  um dia decorou, guardou num dos escaninhos da memória  e, hoje de manhã, os encontrou, um tanto amarelados, mas absolutamente nítidos, preservando a beleza de um passarinho francês:

Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
se não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.

Está no livro “Paroles”, publicado em 1945

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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