Refeição com gosto de traição

Semana Santa Orante 2023 — Terça-feira

Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

É aquele a quem eu der o pedaço de pão passado no molho

Jo 13,26

O nosso hábito de fazer refeição também revela traços de nossa personalidade e de nossos comportamentos cotidianos. O nosso modo de estar à mesa revela nossas habituais atitudes no relacionamento com os outros. A mesa é também lugar de denúncia de nossos fechamentos, de nossas pressas, de nossas resistências ao diálogo, de nossos medos, de nossa dificuldade em acolher o diferente…

Infelizmente, outras “mesas” desalojaram a mesa da refeição e ocuparam o lugar sagrado da partilha, da comunhão. Por isso, em muitos lugares, a mesa esvaziou-se de sentido e passou a atender apenas a interesses mesquinhos, fazendo as pessoas conviverem tranquilamente com a perversa dinâmica da exclusão.

A mesa pode ser corrompida e tornar-se o lugar de rupturas e de frieza. A mesa que funciona como estrutura hierárquica, como posição social, se torna pobre, dissimulada, falsa e até artificial.

mesas para tudo; mesas solitárias, mesas da corrupção, do poder, da exploração, da traição…, tudo o que envolve interesses, seduções, vaidades…

A frieza acaba tomando conta das relações em torno à mesa; a ausência do verdadeiro encontro aumenta a distância entre seus participantes. Há uma verdadeira profanação da mesa quando ela é transformada em lugar de conchavos sujos, negociatas interesseiras, tramas maldosas.

Sabemos por experiência que nosso corpo a todo instante revela quem somos; certamente ele não deixaria de falar de nossa identidade também nos momentos da refeição.

Nesse lugar sagrado (junto à mesa), os corpos se expõem com muito mais naturalidade e transparência. Com sua linguagem não verbal, eles nos falam de posturas, atitudes, crenças, relações…

Vemos, também, corpos fechados para as relações com o outro: não olham, não escutam, não percebem o outro. Encurvados por sobre o prato de comida enxergam apenas a si mesmos e suas necessidades.

O “outro”, que plantou, cultivou, colheu e preparou tais alimentos, não é levado em consideração.

Seu olhar também não consegue alcançar, com gratidão, o esforço daqueles que fizeram os alimentos chegarem à sua mesa. Aquele que está ao seu lado, ou à sua frente, não lhe diz respeito, é um estranho.

A mesa testemunha, também, corpos machucados, feridos, tristes com sua dor, obesos em sua forma suicida de comer compulsivamente…; eles carregam as “marcas” da rejeição, da exploração, da violência e da competição…, vítimas daqueles que não valorizam a vida.

Aqui percebemos que o “tempero” de nossas refeições somos nós que damos.

Os nossos alimentos terão o sabor de nossos desejos e de nossas intenções, de nossa presença significativa. Por isso é que algumas refeições têm gosto de sangue vivo, de ervas amargas, que são selados com a morte de outros (recordemos a última refeição de Jesus: a traição de Judas e a arrogância de Pedro).

Banquete onde se revelam os passos de um drama mortal: traição, medo, frieza, vingança…

A liturgia deste dia nos recorda que Jesus está celebrando a última refeição com os seus discípulos. Ele que transitara por muitas mesas e propôs a grande mesa da partilha (multiplicação dos pães) agora deseja celebrar a Páscoa judaica com os seus mais íntimos.

Judas também está presente na ceia pascal de Jesus com os discípulos. Ceia que o Mestre preparou com cuidado, sem que escapasse nenhum detalhe. É uma ceia para amigos onde Ele vai revelar sua entrega, totalmente; esse é o sentido da Eucaristia: “memória” de uma entrega.

Mas Judas só participa do ritual, está ausente; permanece aí só por uns instantes, pois tem coisas a fazer, e desaparece sem ter presenciado o que ali aconteceu. Outros assuntos exigem sua atenção.

Sentimos pena de Judas, porque é um homem decepcionado com o chamado de Jesus e sua própria vocação. Está “amargo” e triste porque Jesus não correspondia às suas expectativas como Messias.

Judas não compreende o gratuito, ou seja, o que recebeu de Jesus, as possibilidades de ser apóstolo e sair de si mesmo, entregando-se, doando-se… e tudo quer justificar a partir de seu próprio ponto de vista.

Judas não sabe participar e desfrutar de uma agradável refeição em companhia dos outros, nem se preocupa em agradecer a Jesus pela admirável ceia. Judas caminha para a decepção, a solidão e a morte. Abandona o grupo, sai à noite para alimentar seu “ego inflado”, sofre a decepção frente seus “falsos” amigos, vê que sua vida já não tem saída nem sentido.

Será que Judas entendeu, de fato, o projeto de Jesus? Teria sido capaz de abrir mão de seus esquemas messiânicos para aceitar Jesus tal qual se apresentava? Estaria disposto a seguir um Messias pobre, manso, amigo dos excluídos e marginalizados, anunciador de um Reino incompatível com a violência e a injustiça? Judas esperava tirar partido do Reino a ser instaurado por Jesus. Decepcionado e vendo frustrado o seu intento, não teve escrúpulo em traí-lo.

A verdade é que Judas está “vendido” a outros poderes; tem amigos fora da comunidade, mas não dentro; recebe promessas de fora, mas não se sente a gosto dentro; deixa-se levar por falsar informações, é manipulado, oportunista, egocentrado… Por isso age nas trevas da noite; é que as traições são levadas no coração. As traições não têm rosto, são levadas por dentro. Por isso mesmo, os traidores são tão difíceis de serem reconhecidos, de serem identificados: caminham como todos, comem como todos, bebem como todos. Os “judas” não têm rostos especiais, porque qualquer rosto lhes serve; têm cara de amigos, mas por dentro carregam um coração vendedor de vidas, de dignidades. É que o coração do traidor tem cara de inocente; o coração do traidor é especialista em conservar as aparências.

Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.

Com a traição, o fim de Judas é a frustração, o auto-aniquilamento, o desespero e a morte na solidão.

Na contemplação da refeição deste dia, o convite é entrar nos sentimentos de Jesus.

Por uma parte, sente a presença daquele que lhe “vai entregar”. Sente o cinismo de quem compartilha a mesma refeição, quando seu coração já traiu o Mestre.

E Jesus conserva um respeitoso silêncio. Sente que seu coração está como que espremido, mas guarda silêncio. Sente que seu coração está dolorido pela frieza do traidor. Mas não o denuncia; até expressa um último gesto de amizade oferecendo-lhe um pedaço de pão passado no molho do seu próprio prato. Inclusive lhe facilita a saída sem que os demais percebam. Jesus o quer fazer sentir seu amor até o final, para lhe dar oportunidade de reagir. Mas, Judas, não foi capaz de acolher o último gesto de Jesus. O coração do traidor é misterioso. Mas o coração de Jesus é igualmente misterioso: sabe e cala; sabe e protege o traidor até o final

Texto bíblico: Jo 13,21-33.36-38

Na oração: Contemple e se faça presente na última Ceia. Sinta um clima pesado. Jesus se comove profundamente. E não era para menos.

Escute Jesus que diz em voz alta o que todos estão sentindo: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco”. Fala com ternura. Quer que suas últimas palavras e gestos fiquem gravados nos corações de todos nós.

Texto bíblico: Jo 13,21-33.36-38

Depois de dizer essas coisas, Jesus ficou profundamente comovido e disse com toda a clareza: “Eu garanto que um de vocês vai me trair.” Desconcertados, os discípulos olhavam uns para os outros, pois não sabiam de quem Jesus estava falando. Um deles, aquele que Jesus amava, estava à mesa ao lado de Jesus. Simão Pedro fez um sinal para que ele procurasse saber de quem Jesus estava falando. Então o discípulo se inclinou sobre o peito de Jesus e perguntou: “Senhor, de quem estás falando?” Jesus respondeu: “É aquele a quem vou dar o pedaço de pão que estou umedecendo no molho.” Então Jesus pegou um pedaço de pão, o molhou e o deu para Judas Iscariotes, filho de Simão. Nesse momento, depois do pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus lhe disse: “O que você pretende fazer, faça logo.” Ninguém aí presente compreendeu por que Jesus disse isso. Como Judas era o responsável pela bolsa comum, alguns discípulos pensaram que Jesus o tinha mandado comprar o necessário para a festa ou dar alguma coisa aos pobres. Judas pegou o pedaço de pão e saiu imediatamente. Era noite.

Quando Judas Iscariotes saiu, Jesus disse: “Agora o Filho do Homem foi glorificado, e também Deus foi glorificado nele. 32Deus o glorificará em si mesmo e o glorificará logo.

Filhinhos: vou ficar com vocês só mais um pouco. Vocês vão me procurar, e eu digo agora a vocês o que eu já disse aos judeus: para onde eu vou, vocês não podem ir.

Simão Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” Jesus respondeu: “Para onde eu vou, você não pode me seguir agora. Você me seguirá mais tarde.” Pedro disse: “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Eu daria a minha vida por ti.” Jesus respondeu: “Você daria a vida por mim? Eu lhe garanto: antes que o galo cante, você me negará três vezes.”


Adroaldo Palaoro é padre jesuíta, atua no ministério dos Exercícios Espirituais.

Semana Santa Orante — 2023
Ano A — Terça-feira da Semana Santa

Padre Adroaldo Palaoro, SJ Palavra de Deus

Ignatiana Visualizar tudo →

IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

2 comentários Deixe um comentário

  1. Obrigada Pe. Adroaldo. Suas reflexões profundas me ajudam a entrar em comunhão com o Senhor. Bela é esta sua missão. Jesus o abrace com a ternura do Seu Coração.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: