Experimentei um pouco da fome

Gina Torres R. Monteiro

Gosto de começar o ano com o retiro de 8 dias. Esse ano, escolhi o orientado pelo padre Renato, sj, de 2 a 10 de janeiro, na Casa Santíssima Trindade, em Belo Horizonte/MG.

Fui de ônibus e deveria chegar na rodoviária pelas 16 horas. Um pouco antes das 15 horas, o ônibus parou e pude ver uma fila enorme de carros parados. Depois de um tempo sem saber o que tinha acontecido, vi uma jovem contando algo para seus amigos e fui me informar com ela. Um grupinho tinha caminhado para ver o que estava impedindo o trânsito: cerca de 500 metros adiante, o motorista de uma carreta tinha perdido a direção em uma curva – o veículo tombou atingindo outros 2 carros, a carroceria ocupava as duas pistas e a carga estava espalhada pela estrada. Ela não obteve informação de vítimas, mas disseram que estavam esperando a perícia (depois eu soube: 1 morte e 3 feridos). De tempos em tempos alguém dizia que “no máximo em uma hora a estrada seria liberada” – o que só ocorreu 8 horas depois. Cheguei na rodoviária à meia noite…

Com o ônibus ficando tanto tempo parado, os passageiros buscaram onde comprar alguma coisa para comer e, nas proximidades, havia apenas a lanchonete de um posto de gasolina – ouvi um homem falar que distava 15 minutos de caminhada. Eu não quis me aventurar; chovia e havia a possibilidade de o trânsito ser liberado a qualquer momento.  Ouvi dizer que a lanchonete tinha apenas pastel de queijo e sanduiche de linguiça, e uma fila imensa, pois todo mundo que estava parado na estrada ia comprar lá. Vários passageiros trouxeram comida para seus companheiros de viagem e comeram no ônibus. Logo imperava um cheiro enjoativo de fritura. Ninguém avisou que iria à lanchonete ou perguntou se alguém queria que comprasse algo. Eu sentia fome, não tinha nada para comer na mochila e não tive coragem de pedir – afinal chovia, estava escuro e já tinham ido comprado comida para os seus. Fiquei com uma forte dor de cabeça, devido a fome, sede (logo acabaram os copinhos que têm nos ônibus) e forte cheiro de fritura.

Experimentei por algumas horas o que muita gente vivencia por dias, semanas, meses: estar com fome, vendo outros comerem e beberem, sem ter acesso a comida. Sensação de ser invisível, de fazer parte de uma população insensível a seus próximos. Lembrei de estudos que apontam os idosos como descartáveis, para uma parcela da sociedade. Ocasião de aprendizado: se antes eu já tinha por princípio comprar uma “quentinha” para quem pedia comida na rua, agora eu tinha experimentado aquilo que intuía que a pessoa podia estar sentindo…

No dia seguinte, entrei no retiro com “ânimo e generosidade”, como é sugerido. No tempo propício (Terceira Semana), eu quis refletir as “Regras para ordenar-se daqui por diante na alimentação” (EE 210-217) que, na verdade, são regras de temperança, utilizando os alimentos como paradigma. Sempre tendo Jesus como referência (“pense ver a Cristo Nosso Senhor fazendo refeição com seus apóstolos”), ficou forte a 7ª regra: “no comer não seja apressado pelo apetite, mas seja senhor de si, tanto na maneira de comer, como na quantidade que toma”. Concluí esse tempo de oração me propondo a comer com moderação e a alimentar quem se aproximar, com fome (Mt 25, 35a).

Ao escrever esse texto, lembrei-me da poesia “Apetite sem Esperança”[1], que Elisa Lucinda escreveu para a Campanha Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, em 1993. Os primeiros versos me impressionaram na época e tocam ainda hoje:

Mãe eu tô morrendo de fome
eu dizia eu gritava eu mugia
minha vó zangada respondia
você não está morrendo e nem tem fome
Você tem é apetite
Você sabe que vai comer, onde comer, o que vai comer.
Fome não! A fome, minha neta,
a fome, meu irmão,
a fome, minha criança,
é um apetite sem esperança.


[1] Disponível em https://www.facebook.com/ciasurto/videos/apetite-sem-esperan%C3%A7a-elisa-lucindano-poesia-de-quinta-desta-semana-apresentamos/1221551078196552/


Gina Torres R. Monteiro é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade Nossa Senhora de Nazaré, Rio de Janeiro (RJ).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lasar Segall (1889-1957). Armut*, 1920. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.
(*) pobreza

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

5 comentários Deixe um comentário

  1. Gratidão Gina!
    Me fez comtenplar essa cena, e sentir a importância de ter um olhar para o outro em momentos difíceis e da importância da solidariedade na vida em comum. 🙏🌹

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