Aprendendo a perceber Deus na banalidade do cotidiano

Wellington Gomes dos Santos

Uma partilha sobre minhas vivências com a espiritualidade inaciana (ou aprendendo a perceber Deus na banalidade do cotidiano)

Este texto é uma partilha pessoal, realizada a partir de um convite/provocação de uma amiga no Senhor muito querida e cevequiana como eu. Parafraseando o convite dela, a ideia seria mostrar como a espiritualidade inaciana pode fazer diferença na vida da pessoa, nos dias de hoje, seja no discernimento das decisões fundamentais, seja nas situações corriqueiras, favorecendo o seguimento de Jesus na vida cotidiana.

Os apreciadores da perspectiva espiritual apregoada por Santo Inácio, afetuosamente se identificam como inacianos, que como eu, buscam sempre nas partilhas como esta, a oportunidade de uma experiência de crescimento da fé pessoal e comunitária. Justamente por se tratar de uma partilha pessoal, faz-se necessário que eu me apresente.

Eu me chamo Wellington, tenho 35 anos, sou casado há quase três anos com a Elisiê, e pertenço a uma Comunidade de Vida Cristã (CVX) há cerca de sete anos. E escrever este texto, foi-me uma propícia chance de rever minha breve trajetória junto à espiritualidade inaciana.

Desde pequeno, eu vivi sob a influência da tradição religiosa católica. Lembro-me de ter sempre presente a figura de minha mãe de joelhos ao pé da cama antes de dormir fazendo suas orações. Igualmente, eu me recordo dela me contar, algumas vezes, que quando eu nasci, ela havia me consagrado à Nossa Senhora Aparecida, e até uns anos atrás, eu não entendia muito o que isso significava. E talvez isso continue a representar um mistério para mim.

Ainda na infância, eu fui iniciado na tradição catequética católica. Fiz primeira comunhão, crisma e participava frequentemente das atividades na paróquia em Campinas/SP. Como esse foi um período de grande influência do Movimento Carismático Católico no Brasil, essa era única referência que eu tinha sobre espiritualidade até então.

Um fato, de certo modo cômico, é que o início de minha vida adulta, quando eu pensava em espiritualidade ou outra qualquer forma de experiência espiritual católica, automaticamente eu me lembrava apenas de alguma canção do Pe. Marcelo Rossi. Sobre os retiros espirituais então, ouvi uma vez alguém dizer que havia um lugar perto de Campinas (Itaici, talvez…) que oferecia um retiro de “silêncio”. No qual, as pessoas que participavam tinham que ficar, pelo menos dois dias, sem falar e se comunicar com ninguém mantendo-se somente em contato com Deus. Tagarela como eu sou, essa perspectiva em nada me agradava…

Por outro lado, os retiros e as vivências que evocavam espiritualidade na paróquia na qual eu participava tampouco me eram atraentes. Pois, a abordagem presente era centrada em pregações, muitas vezes em tom moralista superficial, e atividades que se mostravam pouco consistentes às questões que me envolviam na época de minha adolescência. Principalmente, quando um pouco mais velho e num período de grande efervescência interna, com desejos, buscas, horizontes e decisões sobre o meu futuro.

Quando, com 19 anos, eu ingressei na universidade, além de integrar à Pastoral da Juventude (PJ) na paróquia, eu passei também a participar de algumas atividades da Pastoral Universitária (PU), frequentando semanalmente às missas no campus onde estudava. Para um/uma jovem, o período da universidade é transformador, e comigo não foi diferente. E no meu caso, isso envolveu a minha fé e o contato inicial com a espiritualidade inaciana.

Em pouco tempo, eu fiz amizades com o pessoal da PU que perduram até hoje e pude participar de meu primeiro retiro universitário. Tratava-se de um retiro de Páscoa, na Vila Manresa em Itaici (Indaiatuba/SP), sobre Exercícios Espirituais para Jovens Universitários. Confesso que, naquela época, eu estando sem dinheiro para viajar para outro lugar mais “agitado”, pareceu-me interessante vivenciar essa experiência. Especialmente, por me possibilitar conviver com outros jovens, e quem sabe, conhecer algumas moças (eu não tinha namorada na época…).

Curiosamente, eu me lembro muito pouco das pessoas que estivarem nesse retiro comigo. E guardar silêncio e fazer as orações me foi um grande desafio. O retiro estava sob a condução do Pe. Raniéri, SJ, com o apoio do Pe. Abel, SJ. E eu me recordo muito bem que conversei bastante com Pe. Abel sobre as minhas inquietações no retiro, e foi ele que, gentilmente, apresentou-me Santo Inácio (ou Inácio, pois é comum nos sentirmos íntimos dele). Ao final desse retiro, ele também me presenteou com uma pequena biografia de Inácio, cuja leitura muito repercutiu em mim.

Foi surpreendente para mim perceber que Inácio, quando jovem, tinha desejos, ao seu tempo e ao seu modo, semelhantes a um jovem como eu naquela época. E me encantou muito, eu me dar conta de que sua história não versava sobre uma experiência divina e piedosamente incólume, como se ele “já tivesse nascido Santo”. A trajetória de Inácio era cativante, eu percebia muita coragem, autenticidade e verdade em sua postura de vivência de seu caminho junto ao Senhor. Caminho, talvez seja essa a palavra que defina a espiritualidade inaciana, a meu ver. Ou melhor, caminho e movimento!

Nesse tempo, eu percebia e me encantava com essas novidades propiciadas pelo olhar de Santo Inácio no campo da espiritualidade, como a perspectiva prática da oração como diálogo com Deus, as ideias e dimensões sobre o discernimento e os movimentos introspectivos de consolação e desolação durante os momentos de oração. Sobretudo, a concepção da oração como um hábito, de exercício contínuo, tornava o contato com Deus mais acessível. Em contraposição a uma perspectiva rígida e distante de Deus, cujo acesso estaria condicionado e dependente da situação de meus pecados. Grosso modo, eu penso que meu paradigma na época era o seguinte: se sou pecador e o pecado me distancia de Deus, então eu estou lascado desde sempre. Porém, eu sentia também que não se tratava de um fatalismo existencial por essa condição humana do pecado, ao se tomar o dogma católico. Pois, se Deus compreende essa nossa condição, e em Seu Amor Ele se fez humano por nós, então Ele nos acolhe em seu mistério, no Magis.

Essa para mim foi a grande sacada, contribuição e comunicação de Inácio a todos nós. Sei que há outros expoentes religiosos que também perceberam e comunicaram isso. Mas para mim, Inácio traduziu isso com a máxima da 2ª Anotação dos Exercícios Espirituais: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz, mas o sentir e saborear internamente as coisas”[1].

Diante disso, eu havia feito uma grande descoberta sobre Deus. Porém, meu caminho era incipiente e ainda sob forte influência de minha primeira catequese. Embora a analogia com o caminho não seja apenas uma figura de linguagem no meu caso.

Pouco tempo depois, eu participei de uma atividade promovida pela Casa Santo Inácio, antigo noviciado jesuíta em Campinas, chamada Peregrinação Inaciana. Esta consistia em uma caminhada de aproximadamente 32 quilômetros, partindo deste local para o Mosteiro de Itaici, no município vizinho de Indaiatuba.

A peregrinação se iniciava no sábado de manhã, e caminhávamos durante todo o dia pela estrada velha que liga esses municípios, passando por diferentes paisagens e com pontos de apoio em quatro paróquias da região. Os grupos de caminhantes costumavam chegar entre o fim da tarde e início da noite em Itaici, para jantar, descansar e celebrar a experiência do dia. No domingo, tínhamos uma manhã de oração, depois uma missa, para então almoçarmos e retornarmos, dessa vez de ônibus fretado, para Campinas.

Pois bem, em minha primeira participação nessa peregrinação eu peguei um sábado chuvoso, de caminhada dura, fria e me molhando praticamente durante todo o percurso. Eu caminhei acompanhando de um médico idoso e um colega universitário, estudante de economia. Apesar dos percalços provocados pelas condições do tempo, tivemos uma experiência muito agradável, com muitas partilhas de vida, de leituras, sobre as nossas experiências de Deus, e ainda momentos em silêncio. Recordo-me que chegamos em Itaici já quase anoitecendo, e ao entrar na igreja principal do mosteiro, eu me sentia contente por ter conseguido cumprir com o trajeto, mas pequeno e desolado ao entrar na igreja, tendo chorado um pouco lá, inclusive.

Numa peregrinação é importante a companhia dos outros caminhantes. No entanto, cada pessoa faz a sua própria experiência, carrega o peso de sua própria história e bagagem. Não sei ao certo por qual razão, mas eu me senti menos valoroso em experiências e conhecimentos do que meus companheiros de peregrinação naquela ocasião. E retomando a observação hoje sobre essa experiência, parece-me que fui mexido e provocado a sair mais de mim a partir daquela vivência. Instigado a ampliar minha visão de mundo e deixar algumas de minhas convicções da época.

Penso que a experiência de peregrinar seja isso: deixar o caminho, como uma alegoria de Deus, te conduzir. Mas atento às paisagens que se comunicam conosco, aos apelos e moções internas, muitas até então ocultas, que começam a se manifestar sem muita consciência nossa, a priori. Em meu caso, nesta e em várias outras experiências inacianas que pude desfrutar, percebo que havia uma autoidentificação ou autocentralidade que eu trazia. Certa vez numa missa, um padre jesuíta disse uma frase que me inquietou e que, salvo engano, está escrita numa placa logo na entrada da Universidade de Salamanca, na Espanha (ainda não pude comprovar isso): “o que a vida não te deu, Salamanca não te empresta”[2].

Sinto que, talvez, muitos de nós procure numa experiência espiritual com Deus a satisfação dessas lacunas. Uma boa compensação por nossos ressentimentos. Ou então, a busca de uma direção, de algo que faça sentido para nós mesmos. Contudo, nem sempre o alcançamos. Quiçá quase nunca, tal qual desejamos em nossa imaginação. Pois, em muitos casos, esses sentimentos são paixões que nos inquietam. Isso é algo bom, mas compreender a direção do Espírito em boa vontade a Deus é um desafio constante e com algumas desolações. Penso que Inácio o sabia bem.

Para mim, a partir dessa peregrinação Deus foi me mostrando como acolher a graça de lidar com aquilo que a vida não me deu. Isso me permitiu começar a perceber o que Ele queria para a minha vida e a ser grato pelo que Ele tinha me proporcionado em minha vida.

Dois anos depois, eu tive uma outra significativa experiência: participei do Voluntariado Jovem, em São Paulo (capital), com cerca de vinte jovens, entre leigos e religiosos. Nessa experiência, ficamos hospedados por dez dias no Centro Anchietanum dos jesuítas. Nessa ocasião, eu reencontrei o querido Irmão Beguinho, SJ, conheci o Pe. Alexandre Raimundo, SJ, outros jovens com quem eu manteria amizades até hoje, e entre essas pessoas, uma que seria minha futura esposa, com quem eu me casaria 9 anos depois.

Essa foi uma vivência muito rica, e bastante convergente ao convite de Inácio para missão, em encontro com os mais necessitados. Como éramos muitos jovens, eu acabei ficando num grupo cujo trabalho voluntário se daria no Arsenal da Esperança. Trata-se do prédio da antiga Hospedaria dos Imigrantes, localizado na zona Leste da capital paulista, e que até hoje abriga diariamente mais de 1.200 homens em situação de rua. Sua fundação foi realizada sob a articulação de Dom Luciano Mendes de Almeida, SJ, junto à SERMIG – Fraternidade da Esperança, originária de Turim, Itália[3].

Lembro-me, que ao final dessa experiência, eu fiquei muito mexido internamente. Porque, ao encarar algumas das variadas realidades de pessoas que se encontravam em situação de rua, eu, um jovem universitário à época, dei-me conta da amplitude, diversidade e vulnerabilidade que a nossa condição humana nos suscita. Percebi também que, apesar de importantes e necessárias, nossas referências materiais não são suficientes como garantia ou proteção a uma vida digna. O contato que tive naqueles dias com algumas pessoas em situação de rua, conhecendo um pouco de suas histórias, fez com que eu e meus companheiros e companheiras de voluntariado nos sentíssemos provocados a uma busca de sentido maior sobre as nossas vidas, penso eu. Comecei ali compreender o mistério que envolve a Graça de Deus nas relações entre nós, humanos, com coisas necessárias à nossa subsistência.

Recordo-me que eu havia chegado a essa experiência com uma certa prepotência, enquanto estudante de ciências humanas, que considerava que compreender que essas questões sociais ultrapassavam os aspectos de uma prática de caridade piedosa, era por si só, algo mais que suficiente. Porém, “a vida é a arte do encontro”[4], e eu ainda estava distante de perceber Deus no outro, sobretudo, no desamparado. Ao conhecer um pouco dessas histórias, eu começava a sentir e a aprender que há inúmeras possibilidades em nossas vidas, nas quais corremos o risco de cairmos numa situação semelhante à daquelas pessoas, tal como o ferido ajudado pelo bom samaritano (Lc 10, 25-37).

O acesso à renda, a um lar material seguro é importante e fundamental. No entanto, sentir-se vinculado a um grupo, pertencente a uma família ou a laços afetivos de compreensão e acolhimento, é igualmente necessário. Ao escrever isso, vem-me à mente duas situações bíblicas: o “encontro” de Jonas com o peixe que o engoliu (Jn 1, 17); e o Sermão da Montanha (Mt 5, 1-12), quando Jesus aponta ao povo que o escutava (e a todos nós) as bem-aventuranças.

Como o Papa Francisco nos recorda em sua mensagem para o V Dia Mundial dos Pobres, celebrado no dia 14 de novembro de 2021, “sempre tereis pobres entre vós” (Mc 14, 7). Alguns anos precisaram se passar para que eu, já mais maduro, conseguisse compreender tudo isso. Depois de pelejar um pouco com Deus perante essas questões (acho que todos nós fazemos isso em nossa relação com Ele tal qual Jacó o fez[5]…), eu pude escutar o que Deus me comunicava.

Ou seja, a partir dessas e de outras experiências, eu tenho compreendido que o que convencionamos denominar de dignidade da pessoa humana, para nós cristãos, significa um chamado ao encontro, ao relacionamento direto, ao diálogo e ao acolhimento ao próximo. Enfim, a uma experiência do Amor de Deus com o/e no outro(a).

Quatro anos depois, eu tive a oportunidade de participar de um retiro de oito dias dos Exercícios Espirituais (com colocações) em Itaici. Era janeiro, logo após o réveillon. A casa de retiro estava cheia e havia chuvas fortes no fim da tarde, algumas com tempestades.  Recordo-me, de ter iniciado esse retiro um pouco desconfiado do processo de conversação com Deus. Porém, na expectativa do que Deus me reservava no percurso de minhas orações, conforme as orientações que o Pe. Eduardo Severino, SJ, meu acompanhante espiritual na época, tinha me dado para essa experiência de oração e contemplação. Esse era um período de muitas mudanças em minha vida, e eu me sentia um tanto confuso em relação ao meu projeto de vida e no contato com Deus.

Dessa experiência, eu tenho pelo menos três memórias muito marcantes. A primeira, de cunho mais reflexivo, refere-se à minha percepção de que a nossa comunicação com Deus é um processo íntimo e individual. Mas que se processa a partir das relações que constituímos com as outras pessoas em nossa vida. Portanto, por mais que permaneçamos em profundo silêncio durante o período do retiro junto aos demais participantes, estes são nossos cúmplices nessa vivência espiritual. A isso se somam as pessoas do nosso afeto, que deixamos em nossas casas e nos outros lugares de nossa vida cotidiana. Também daquelas que nos acompanham mais próximas nessa trajetória espiritual, como o acompanhante do retiro, o nosso assessor espiritual ou nossa comunidade de pertença.

A segunda lembrança é a da solidão sentida naqueles dias de retiro. Especialmente, quando dos momentos a noite, após as fortes tempestades que faziam com que cessasse a disponibilidade de iluminação elétrica no Mosteiro de Itaici. Eu jamais gostei muito de ambientes escuros, porém, naquela circunstância, notar-me em silêncio na escuridão, com a companhia discreta das demais pessoas exercitantes, auxiliou-me a sentir a presença serena de Deus comigo. Essa ressonância interna me fez perceber Sua companhia não apenas naquela ocasião, como em outras anteriores em minha vida. Em muitos casos, são nos momentos de escuridão de nossas vistas que nos entendemos, ou nos permitimos, sermos conduzidos por Deus.

A última e mais marcante memória desses dias, foi quando ao final de uma das missas diárias que celebrávamos todo fim de tarde (salvo engano, no quinto dia do retiro), a canção tocada no seu encerramento foi “Mãe do Céu Morena”, do Pe. Zezinho. Até então eu nunca havia ouvido aquela música, e após alguns trechos tive uma grande consolação, que me fez chorar copiosamente.

Pela primeira vez em minha vida, eu entendi, e principalmente senti concretamente, o que significava ser consagrado à Nossa Senhora Aparecida. Pois, lembremos que, segundo a minha mãe, quando eu nasci, ela, diante de seu primeiro filho e dos desafios que uma maternidade solo representava há trinta e cinco anos atrás (e que ainda representa para muitas mulheres hoje em dia), ela me consagrou a Nossa Senhora Aparecida. Através dessa canção, naquele instante, eu me dei conta da presença ativa e humana de Maria, mãe de Jesus, através da minha mãe, da minha madrinha, de professoras, de amigas, entre tantas outras importantes e presentes mulheres que faziam parte de minha vida naquela época. Mulheres que me acompanharam, e que ainda me acompanham em minha vida, crentes ou não. Porém, todas, e cada uma a sua maneira, trouxeram-me amor, paz e consolação. Elas me incentivaram a tudo partilhar, mesmo no pouco, e a não cansar de buscar Jesus, e me ensinaram “que a justiça é condição de construir um mundo mais irmão”[6].

Essa foi a minha experiência de consolação espiritual central nesse retiro, que me permitiu compreender o que é esse saborear (sapere – saber e ter sabor) que Santo Inácio tanto menciona.

Meses depois eu me mudei para a capital federal por motivos profissionais. Longe de meus familiares e num lugar novo, vi-me novamente sob os cuidados de Deus.

As preocupações inerentes à minha adaptação diante dessa nova realidade deixavam-me ansioso e desolado. Porém, inspirando-me na introspecção das árvores do Cerrado que ocupavam a paisagem que me rodeava, eu aos poucos aquietava o coração, e ofertava meu caminho ao Senhor. Anos depois, ao ler a autobiografia de Santo Inácio[7], eu me dei conta de como Deus é bom e paciente com todos nós, conduzindo-nos, com um modo e carinho particulares, em nossas trajetórias.

Nesse tempo, eu tive ainda a graça de ser acolhido por amigos e amigas no Senhor, que me abrigaram com muito carinho em uma pequena Comunidade de Vida Cristã (CVX), chamada Dom Luciano Mendes de Almeida. Desde então eu pertenço à CVX e, com o passar dos anos tenho aprendido, cotidianamente, o que significa fazer parte de uma comunidade orante, à maneira inaciana. Sobretudo, de uma comunidade cuja integração extrapola os limites de minha pequena comunidade de pertença, excedendo-se para uma comunidade mundial. Eu costumo brincar que a CVX é a Companhia de Jesus dos Leigos (que Deus e Santo Inácio tenham piedade de nós…).

Brincadeiras à parte, o que eu gostaria de destacar com esse pequeno relato, é que em minha experiência até aqui, a espiritualidade inaciana me faz, diariamente, perceber como Deus se revela em minha vida na banalidade do cotidiano. Como citei no início deste texto, em minha infância eu tive uma primeira catequese e expressão de fé muito pautada em abordagens de oração piedosas, que me indicavam Deus como um ser superior e distante, ocupado mais em julgar do que em amar.

Diante disso, eu penso que não seja pretencioso de minha parte, poder me ver com correspondências na experiência de conversão de Santo Inácio. Quando ele, motivado pela graça de sua conversão a Deus quis fazer o melhor de si para Ele. No entanto, algum tempo depois, sentindo moções e discernindo muito em oração com Deus, Inácio se deu conta de que o melhor de si que Deus queria dele, ainda estava oculto, e se centrava não naquilo que se traz, se possui ou se fez. Deus nos quer disponíveis a ação Dele em nossas vidas. Pois, não há relação sem disponibilidade.

Enquanto redijo este texto, estamos no período da quaresma, e no primeiro domingo desse tempo litúrgico, o evangelho abordava a tentação do Diabo a Jesus (Lc 4,1-13). O mal tenta Jesus por três vezes oferecendo a Ele o possuir (Lc 4, 3), o prazer e a prepotência (Lc 4, 6), e o poder (Lc 4, 9). Mas Jesus reconhece que tudo isso é efêmero, ainda que integrante da nossa condição humana, e para Deus oferece sua permanente disponibilidade (Lc 22, 42) e não o fatalismo apregoado pelo mal.

O que eu quero salientar é que, pelo menos pela minha vivência diária até aqui, uma espiritualidade do e no cotidiano, constitui-se ao se perceber envolvido por Deus, mesmo que algumas vezes incida alguns ceticismos sobre a nossa relação com Ele. Sinto que para Deus nossa disponibilidade para a caminhada propicia os Seus utopismos em nossas vidas. Ele nos conduz, para lugares novos, desconhecidos e, muitas vezes, desconsiderados por nós. O senso comum, poderia chamar isso de acaso ou coincidência casual. No entanto, para o coração atento, trata-se de propicialidades do Divino! Deus sempre nos é favorável!

Nesse ponto desta escrita, eu me pego pensando em tantas coincidências manifestadas em minha vida, a partir das experiências que relatei nessas breves linhas. Penso que elas não convêm aqui no momento, pois ainda que eu as possa compartilhar, elas têm um sentido para mim bastante pessoal.

Deus sempre nos é propício, e podemos estar com Ele também a partir de nossas atividades cotidianas

Confesso, também, que em muitas ocasiões eu tenho dificuldades em me colocar em silêncio para orar. Aquietar-me por uma hora, ou por algumas dezenas de minutos, muitas vezes, me é um grande desafio. Porque são muitos os compromissos e as inquietações que me perturbam (pelo menos eu tenho essa impressão…). Contudo, como diria Santa Tereza D’Ávila, “em meio às panelas, também anda o Senhor”. E como outro dia eu li num relato de um jesuíta estadunidense, pode-se diariamente “tomar um café com o Senhor”. Portanto, Deus sempre nos é propício, e podemos estar com Ele também a partir de nossas atividades cotidianas, sejam as mais banais, oferecendo nossa vida à Sua presença. E é nesse ponto que encontro a correspondência com a citação de Santo Inácio, que fiz acima, com as manifestações de Jesus no evangelho: disponibilidade para contemplar Deus no cotidiano.

Para encerrar, eu trago um trecho de uma das últimas entrevistas do Pe. Adolfo Nicolás Pachón, SJ:

Para os jesuítas é significativo que – se não me engano – Santo Inácio se interessasse mais pelo caminho, ou seja, por como crescer e se transformar em Cristo, do que por outros aspectos. O desafio para nós, cristãos, reside na necessária sensibilidade de todos os continentes para obter a plenitude de Cristo, que ao mesmo tempo é nossa plenitude de ser humano. Esta visão palpita em muitas palavras do Papa Francisco em favor de migrantes e refugiados[8].

Que nos coloquemos sempre a caminho com o Senhor, a saborear internamente as coisas, nesse mundo que, muitas vezes, se mostra em trevas à humanidade!


Notas

[1] Santo Inácio de Loyola. Exercício Espirituais. 14 ed. São Paulo: Edições Loyola: 2015.

[2] Nota do revisor: A citação encontra-se esculpida no pórtico do edifício das escolas menores da Universidade de Salamanca: “Quod natura non dat, Salmantica non præstat”. Provérbio latino que significa que mesmo uma universidade não pode dar a um sujeito nada que a natureza não lhe tenha fornecido antes como características, a exemplo de talentos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Quod_natura_non_dat,_Salmantica_non_pr%C3%A6stat).

[3] Pe. Simone Bernardi. O bom samaritano e a hospedaria. A experiência do SERMIG e a do Arsenal da Esperança como tentativa de atualização da parábola lucana, enfatizando o ponto de vista da hospedaria. São Paulo: Edições Loyola, 2017.

[4] Segundo o poeta, sambista e diplomata Vinícius de Moraes, apesar dele ressaltar que “haja tanto desencontro na vida…”.

[5] Gn 32, 23-32.

[6] Trecho da canção “Mãe do Céu Morena” do Padre Zezinho, SCJ, Álbum Melhores Momentos, Paulinas, 1995.

[7] Escritos de Santo Inácio – O Relato do Peregrino (Autobiografia). 2. ed. São Paulo:  Edições Loyola, 2014.

[8] https://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/560348-entrevista-com-o-pe-adolfo-nicolas-preposto-geral-da-companhia-de-jesus.


Wellington Gomes dos Santos é leigo, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade Dom Luciano, Brasília (DF).

Imagem: Tomie Ohtake — Sem Título, 1982. Óleo sobre tela

Comunidade de Vida Cristã (CVX) Espiritualidade cristã Leigas e leigos

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Obrigada por compartilhar tanta vida!!! Bonito que o texto se torne público no dia seguinte à festa de Nossa Senhora Aparecida, a quem você foi consagrado! Carinho de Deus ao filho amado!

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