Cabelos sem tinta, a vida (sempre) de verdade
João Carlos Pereira
Deus nos ajude que não surja outra pandemia tão cedo. Esta que deu uma rasteira na humanidade e nos reduziu ao nada que somos parece estar com os dias contados, mesmo assim, não foi suficientemente forte para ensinar ao mundo lições básicas de humildade. Quem aprendeu novas lições, melhorou. Quem continua do mesmo jeito, paciência. Vai ter que esperar a próxima catástrofe para se aprumar.
Tive certeza disso, quando vi a Fafá de Belém, na TV, pedindo apoio dos paraenses à campanha de doação de cestas básicas para as gentes do Marajó. Ela, uma artista de prestígio internacional, estava com a cabeça toda branca. Usava roupa de andar em casa e trazia as unhas ao natural. Era Fafá sendo Fátima, a forma como é tratada entre os seus. Pois foi a Fátima quem entrou em nossas casas, na pele de Fafá, no melhor estilo gente como a gente.
Completamente desprovida de vaidades, assumiu os cabelos e, nos dias em que, como todos nós, ficou presa em casa, não se importou com nada que não significasse proteção à própria vida. O que era periférico, superficial, ainda que para uma pessoa de vida pública, perdeu totalmente a relevância.
Há alguns dias, conversamos por telefone e eu falei que havia adorado os cabelos sem tinta. A resposta não poderia ter sido outra: “João, eu estou em paz”. Apenas uma pessoa em paz consegue, apesar da fama, deixar de lado qualquer tipo de ostentação pueril e se mostra ao mundo do jeito como é. Ser como somos é o maior sinal de sabedoria e de equilíbrio que alguém pode ter. É a paz que tanto queremos. Pintar o cabelo não é problema. Fica bonito. Problema é a servidão cega ao artificialismo.
Tenho lutado para encontrar essa paz. O caminho não é fácil e, com certeza, não passa apenas pela religião. O encontro do homem com ele mesmo leva a Deus, mas de nada adiante querer Deus, se a criatura não quer nem a si mesma.
A fé talvez seja o primeiro passo para a paz. O caminho da luz interior só pode ser encontrado por quem, de verdade, o deseja. Esse processo de iluminação acontece apenas de dentro para fora. Por isso é tão dolorido. Por isso dá a sensação de algo que rasga as entranhas.
Descobrir-se é missão da vida toda e talvez a maior de todas. Quando Jesus disse que é preciso descobrir a verdade e que apenas a verdade vai nos libertar, falava dessa conquista de todo dia, da luz que se acende dentro e vai clareando o que em nós é obscuro.
O homem livre é o que, na sua paz, se conhece e pouco se importa com a opinião do mundo. Isso não significa ser superior, mas a indiferença ajuda a superar o que nos consome. Os antigos, principalmente os antigos de Portugal, gostavam de dizer que “quem cala, vence”. Não se trata do silêncio submisso, mas da resposta sem palavras. Bater boca é poluir a atmosfera com energias ruins. Calar-se é despoluir a vida.
Os cabelos brancos da Fafá falam da liberdade de uma pessoa que, a princípio, por ser artista, deve zelar pela “imagem”. Mas a melhor imagem é o autêntico reflexo no espelho de quem se é de verdade.

Com ou sem pintura.
O nome disso é paz.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Claudio Tozzi — Chuva Azul, 1999/2000. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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