Eneida, tanta história, tanto amor, tanta gente
João Carlos Pereira
Há tanta coisa para dizer a respeito de Eneida, que eu precisaria preparar uma série maior, bem maior, do que a que dediquei à professora Graziela. A questão não é a quantidade de crônicas, mas a possibilidade de traçar um perfil verdadeiro e honesto, sem incorrer em equívocos. Como sou encantado, apaixonado mesmo, pela figura de Eneida, e me conheço, sei que estacionaria indefinidamente diante de seu nome e, cada vez mais, me deixaria, encantado, envolver por seu espírito feito liberdades. Seu sonho de amor e de esperança seria meu tema único, mas não pode ser assim, porque, como se diz hoje, a fila precisa andar. Mesmo quando estiver revivendo, em forma de homenagem, outras figuras de nossa terra, quando falar de amor e de liberdade, estarei falando de Eneida. Desculpem, é um caso declarado de paixão.
Toda a gente com quem eu falo e a conheceu me conta história. É como se houvesse um fato, um acontecimento para cada dos dias dos 66 breves anos que esteve entre nós. Vou narrar alguns, dos muitos que escutei, para mostrar quem foi Eneida, a jovem idealista que, aos 26 anos foi embora de Belém, onde viveu a mais feliz das infâncias, na casa da rua Benjamin Constant, à época localizada no “3º. Districto”, construída pelo pai especialmente para seu nascimento.
Quem desejar conhecer melhor a Eneida, deve procurar suas crônicas. Lá, tudo é biográfico. Tudo é verdade vivida com intensidade e coragem, doçura e aceitação do outro. Mas muitas histórias não estão lá. Ficaram no coração dos amigos, presas à palavra de quem conviveu com ela. Todas revelam a mesma ousadia de uma mulher, como ela mesma garantia, nunca topou chantagem e que “morreria, porque não havia outro jeito, mas morreria com raiva”, porque amava a vida.
Quando veio a Belém gravar o célebre depoimento para o Museu da Imagem e do Som, foi visitar o governador Alacid Nunes, de quem era amiga. Recebida no topo da escada, olhou para ele e disse: “caboco (caboclo) de ti eu gosto, mas desta canalha que te cerca não gosto não”. Eneida era assim. E não havia quem não gostasse dela.
Para o depoimento, que seria histórico, o primeiro do nosso MIS, os organizadores cercaram-se de cuidados. Em vez de adquirir filme mais simples, Rio ou em São Paulo, mandaram buscar, nos Estados Unidos, um tipo novo de película, algo top de linha, mas incompatível com o clima da Amazônia. Era sensível demais ao calor. Eneida conversou com seus entrevistadores e o encontro, segundo quem esteve com ela, foi maravilhoso. Talvez armazenado de forma incorreta, o filme não resistiu às altas temperaturas e, quando foram ver, estava todo descascado todo. Parecia pele de cobra na muda. Não houve como aproveitar um minuto sequer. Pelo menos naquela época. Hoje teria restauro, com certeza. O fim que levou? Sabe Deus….
Eneida amava Belém e falava de sua terra com imenso carinho. Chamava as mangueiras de “bailarinas verdes com saias brancas”. Sentia tanta saudade daqui, que lavava para o Rio muitos vidros de banho de cheiro. Quando o estoque acabava, escrevia aos amigos, pedindo mais. Ela não acreditava no poder das ervas, mas dizia que construía a própria felicidade, com as mãos e a cabeça encharcadas do cheiro do Pará.
No Rio de Janeiro, a busca da felicidade vinha da luta pela justiça social e do orgulho de ser comunista. Em 1932, já estava filiada ao partidão e era militante inflamada. No dia em que foi presa pela primeira vez, a prova do crime foram os dois mimeógrafos apreendidos em sua casa, nos quais rodava material de propaganda a ser distribuído. De dia, era magrinha. À noite, transformava-se numa senhora gorducha, tamanha a quantidade de papel que ocultava sob o vestido. Entre 32 e 34 foi presa onze vezes. Depois esteve outras tantas. Conheceu a fera que existe dentro dos homens e conviveu com criaturas que traziam anjos dentro de si. Suas experiências de dor, de solidão, de fome e de fraqueza, de solidariedade e de fé na humanidade, no Pavilhão das Primárias, estão relatadas em crônicas. Melhor do que falar sobre elas é lê-las.
A menina que teve uma babá francesa, em Belém, chamada Elise Platt, adotou o cognome Nat, ao tempo em que esteve ligada à União Feminista do Brasil, pela qual lutava a favor dos direitos políticos, sociais e trabalhistas da mulher. Se vivesse hoje, estaria ligada aos partidos de extrema esquerda e não daria um minuto de sossego ao Bolsonaro.
No tempo em que morou em Paris, fez-se amiga de Jean Cocteau, Paul Eluard, Louis Aragon e Pablo Picasso. Em 59 e 60, depois de uma série de desistências e impedimentos de outros amigos de profissão, chegou ao topo da lista de quem iria, em nome do Sindicado dos Jornalistas, ou da ABI, não tenho certeza, à União Soviética e à China. O que viu e sentiu está registrado no livro “Caminhos da Terra”. Nunca li um livro de viagens tão doce, tão lírico e, ao mesmo tempo, tão comprometido com o seu ideal. Onde se compra? Apenas em sebos. E com muita sorte.
Em Belém, noutra ocasião, acompanhando um grupo de escritores brasileiros de projeção nacional, entre eles Jorge Amado, protagonizou uma cena inesquecível. Lindanor Celina conta o fato no livro “Pranto por Dalcídio Jurandir”. Foi assim.
Jacques Flores havia decidido dar um jantar em honra dos visitantes. Pobre, comprometeria um dinheiro que poderia lhe fazer falta no dia seguinte. Dalcídio aconselhava: “não gaste seu dinheiro com isso. Amanhã eles vão embora e nem se lembrarão”. A hospitalidade paraense era maior que a contabilidade. Jacques, pseudônimo do poeta e jornalista Luiz Teixeira Gomes, parecia não se preocupar. Mandou fazer um pequeno festival gastronômico com coisas da terra. Ofereceu bebida à vontade. Dalcídio achou desnecessário, mas não podia proibir. No fim da noite, Eneida já havia tomado todas, subiu na mesa e disse, para o espanto dos convidados. “Eu sou Eneida, viu? Eu mijo em Jorge Amado; eu mijo em Zélia Gattai, eu mijo em todo mundo”. Dalcídio baixou a cabeça, mas tudo acabou bem. No dia seguinte, os escritores talvez não lembrassem da comida, mas o episódio não foi esquecido.
Igualmente a presença de Eneida ficou na memória de quem participou do primeiro baile do Pierrô, na sede do clube do Remo. A narrativa é da professora e escritora Nelly Cecília Rocha. “Eu era novinha e ia aos bailes do Pierrô. A Eneida chegou e todos pararam para vê-la. Ela subiu o primeiro lance da escada do clube do Remo e, na plataforma de acesso ao segundo lance, avisou: ‘eu vou pular, pessoal. Eu vou pular´. As pessoas pensavam que ela estava dizendo que iria pular o carnaval, que iria dançar. Que nada. A advertência tinha outro sentido: ela pulou mesmo, se atirou sobre as pessoas. E sabe que ajudou a segurá-la? O doutor Alcyr Meira…”
Eneida entregou-se de tal forma às folias de Momo, que foi escolhida para samba-enredo em duas escolas no Rio – Salgueiro e Unidos do Tuiuti – e, aqui, no Quem São Ele. O samba, de João de Jesus Paes Loureiro e Simão Jatene, é lembrado até hoje. Na Tuiuti, foi tema em 1990 e depois houve uma releitura em 2010.
A uma menina peralta que sempre foi, viveu cada minuto da existência com alegria e sofreguidão. Não tinha medo de nada ou de ninguém. Enfrentou Getúlio Vagas com uma coragem rara. A prisão, sua velha conhecida, já não a intimidava. Passou fome e frio, padeceu com o calor e todo tipo de adversidade que o cárcere pode oferecer aos inimigos do regime. Nada, porém, foi capaz de deitar uma gota de fel em sua alma. Quem conviveu, entre os muros do cárcere, com Olga Benário Prestes, Nise da Silveira, Graciliano Ramos e tantos outros companheiros de fibra, não podia se dar ao luxo de perder a esperança ou de entristecer-se.
Eneida era boa, justa e generosa. E bonita também. Vicente Salles dizia que sua voz ficou rouca, de tanto gritar pela liberdade. A literatura que produziu é de tal forma lírica, que comprova o que Jesus disse: a boca do homem fala do que está cheio o coração. No caso, seu texto fala até hoje de amor.
O corpo de Eneida está sepultado, por sua disposição, na ala esquerda de quem entra no cemitério de Santa Isabel. Desejou ser enterrada aqui, para que o corpo decomposto servisse de seiva para as mangueiras, a suas bailarinas verdes de saiote branco.
Uma vez estive lá para ver o local onde havia sido enterrada. Encontrar esse túmulo foi uma luta. Na Secretaria do cemitério, velhos, pesados e desgastados livrões, com páginas soltas e machucadas, convivem com a quase modernidade de um computador velhinho, onde estão registrados os óbitos mais recentes. Apesar da boa vontade e da simpatia, o funcionário não conseguiu identificar com precisão o lugar. Uma zeladora, já aposentada, mas que conservava amigos naquele ambiente e, talvez, motivada pelo costume, voltava todos os dias ao antigo trabalho, sabia onde Eneida repousava, mas não sabia indicar. Precisa tatear. “Não é aquela escritora famosa? Vamos procurar”. “Sim, ela mesma”, respondi, agradecendo a disponibilidade.
A mulher foi desbravando caminhos cobertos pelo mato. Aqui e ali falava com algum coveiro ou uma zeladora. Me disse que nunca havia visto uma visagem, mas julgo que não é fácil viver entre cadáveres, assistindo a cenas de tristeza e de desespero todos os dias. Mães enterrando filhos. Gente devolvendo à terra pessoas que amavam. Seu olhar guardava um certo descaso e era um pouco desbotado. A pele ressecou, como a de um retirante. Limpar sepulcros, capinar pequenos jardins de solidão e tristeza, esse foi seu ofício.
Era difícil, para mim, caminhar sobre os mortos e, a todo momento, eu pedia licença e desculpas por estar pisando em lápides, violando o sossego de quem foi esquecido ou mal-lembrado. Covas relegadas, parentescos desvinculados pela morte. Durante muitos anos paguei zeladora para cuidar da última morada de meus bisavós, de minha amada tia Lívia e de meu pai. Nunca fui vistoriar o trabalho, porque não mantive o estranho hábito de toda semana frequentar o cemitério, como era rotina em nossa casa. Entendi que eles não estavam lá e deixei correr solto, nem finados, nem dia nenhum vou lá. Se passo pela avenida José Bonifácio, consigo ver as sepulturas, mas entrar, não entro.
No dia em que fui ver a campa da Eneida, passei pela dos meus bisavós. Quis ser indiferente, mas não consegui. Assim que chegamos ao lugar onde o corpo da escritora foi sepultado, tomei um susto. É um túmulo branco, todo branco, estranhamente branco, sem encardidos. Na pedra de cima está escrito seu nome, grafado com sua caligrafia. Eneida imprimia tanta força à caneta, que seu autógrafo varava por três ou quatro páginas seguintes às da folha de rosto. Por um minuto julguei que ela mesma poderia ter escrito no mármore, tamanha a semelhança. Mas a cruz de mármore sumiu e as floreiras estavam vazias, detonadas.
A jornalista Lana, amiga de Eneida, sua companheira de sonhos, minha professora na Universidade, por muitas vezes tentou plantar uma mangueira no exato espaço onde a escritora desejou. A árvore jamais vingou. Não porque lhe faltasse a seiva dita “eneidiana”, mas o lugar era impróprio. Cresceria espremida entre os túmulos e, com a força com que surgiria do solo, arrebentaria tudo que estivesse por perto. Bailarinas verdes também possuem energia. Bailarinas verdes, nutridas por Eneida, formam o tipo invencível. Nem o vento pode com elas. Nada pode. Por isso eram arrancadas antes que pudessem resistir. Se vinham de Eneida, seu nome seria resistência.
Fiz as fotografias que desejava e fiquei olhando para a sepultura por um tempinho, certo de que nada mais de Eneida restava ali, a não ser o chamado osso branco, ou pó de osso. Em 2021 ele completará 40 anos de morta. A data é macabra, se considerarmos que sua maior paixão foi a vida. A vida plena. A vida livre.
Poderia ter deixado uma rosa vermelha sobre a pedra, mas ofereci orações. Se ainda voltar àquele carneiro, me lembrarei da rosa vermelha, sinal de paixão pela vida, a cor de seu partido do coração. Símbolo do seu ideal.

Duvido muito que retorne. Encontro Eneida onde e quando quero. Ela mora aqui, no que há de melhor em mim. Nos sonhos que não realizei. Na vontade que tenho de ser livre como ela foi. Em qualquer lugar desta Santa Maria de Belém do Grão-Pará, que tanto amou e eu tanto amo também, ela está.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Tarsila do Amaral — Árvore, 1922. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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