Tanta gente que explodiu. Tantas vidas pelas ruas.

João Carlos Pereira

Tirando a professora Graziela, poucos tipos populares povoaram minha infância. Havia a Maria Igarapé e o Cheira-Éter, mais ninguém. Existia um senhor que batia à nossa porta, um português, oferecendo peixe e camarão. Naquela época, não havia geladeiras como as de agora, elétricas. Lembro da caixa recheada com gelo em escama, comprado na fábrica Guarany, nossa vizinha, depois substituída por uma geladeira movida a querosene. Comprávamos tudo fresquinho, sem precisar ir ao mercado. “Seu” Peixe Camarão era o fornecedor de mariscos, num tempo em que não se falava em frutos do mar. Mudamos para Nazaré e fui reencontrá-lo, já adulto, nas páginas de “Aruanda”, livro de Eneida, mais exatamente na crônica “Tanta Gente”, na qual fala dos alienados de seu tempo de menina, que vagavam pelas ruas de Belém.

De todos, lembro somente de Peixe Camarão. Até meio-dia, era um homem inofensivo, que fazia o que hoje se chama de “delivery”. Vinha com duas sacolas tecidas com palha e um facão para cortar o peixe. Até meio-dia, cuidava de seu negócio. Às doze em ponto – dizia a Eneida – era possível acertar o relógio por sua passagem. Riscava na paisagem, completamente bêbado, gastando o dinheiro que ganhara honestamente. Ao que se saiba, usava o facão somente para limpar os peixes, tirar as escamas e fazer as postas. Não me lembro de se falar em filé, nem soube que tivesse ferido alguém.

Dos outros por ela descritos não trago nenhuma memória. Nasceram e, provavelmente, morreram antes de mim.

Havia uma negra magricela, pernas finas e tuíras, apelidada de Diabo Atrás da Saia. Os meninos berravam a alcunha e ela pegava santo. Com a sombrinha, tentava espantar o diabo que se abrigava atrás de sua saia de “cor indecisa”. Berrava todos os palavrões e atirava pedras na molecada. “Tainha” e “Burra Cega” não podiam ouvir os próprios apelidos, que avançavam com pedras sobre seus detratores. Chamavam todos os nomes feios que conheciam, sufocados pela gritaria da molecada.

Havia uma mais calminha, a “Madame Urubu”. Andava toda de branco, carregando duas trouxas nas mãos. Quando perguntavam qual seu destino, dizia apenas que estava de mudança. Outra criatura baixa, gorducha e cachaceira era de tal forma apaixonada por Lauro Sodré, que parava nas esquinas e fazia discursos, louvando aquele a quem chamava de grande homem, sábio, impoluto e genial. O tom da fala era o dos oradores inflamados. Não acertava a pronunciar o nome da capital de Pernambuco. Para ela, Recife era Refice. Também dizia poemas de Castro Alves, da forma mais estropiada possível.

Existia uma certa Arantes, mulher que temia o vento, porque achava que ele engravidava as que estivessem sob seu alcance. Quando via uma de barrigão, assustava-se, mandava que as outras segurassem bem suas saias e avisava: “cuidado, ele é traiçoeiro, muito traiçoeiro”. Como se houvesse testemunhado o estupro, apontava para a gestante e afirmava: “olhem o que o Arantes fez nela!”

Uma vez, vi um senhor magrinho, metido em mangas de camisa, cabelo fino, partido para o lado. Ela trazia nas mãos um banquinho de madeira, no qual subia, diante das paradas de ônibus, para exaltar as virtudes de “sua santidade o papa Paulo VI”. Esse não apareceu na lista da Eneida, que morreu em 1971, aos 66 anos. Paulo VI ainda sobreviveria mais sete, partindo no dia 12 de agosto de 1978. Na quarta-feira, depois de amanhã, vamos celebrar os 42 anos de sua chegada ao céu. Paulo VI, nascido Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, já é santo. Sempre que vou à gruta vaticana, mesmo antes de haver sido beatificado, me ajoelho e rezo diante de seu túmulo. Essa devoção deve ter tido origem, pelo menos em parte, por influência dos pronunciamentos que escutei na rua.

Nos meus tempos de Modernista, época de orgulho e glória intermináveis, eu via, pela Brás de Aguiar, um sujeito gordinho, com uma entrada grande na cabeça, onde havia cicatrizes emoldurando o que lhe restou da cabeleira muito lisa. Chamam-no Maxico. Ele sentava num batente qualquer, puxava do bolso a caixa de fósforos e se encantava com a chama dos palitos. Diziam que, uma vez, estava tão bêbado, que foi recolhido pela polícia e enfiado no camburão. Um acidente incendiou o carro e ele, preso, desesperado, dentro do rabecão, teria enlouquecido. A partir de então, devotara-se ao fogo. Se alguém passasse e o cumprimentasse pelo nome, Francisco, era doce na resposta. Mas dissessem Maxico, entrava em pânico, esculhambava, jogava pedra, corria atrás. Nunca me arrisquei a pronunciar o apelido e não foram poucas as vezes em que o vi cheio de cólera, coitadinho. Há alguns anos tornei a encontrá-lo. Estava magrinho e continuava a olhar apaixonado, encantado, para a chama dos fósforos. A roupa parecia mesma daquele tempo, só que bem mais folgada. Pobre Maxico. Pobre Francisco.

Há uns bons vinte anos, quando morei no Umarizal, na minha querida rua Antônio Barreto, a uma quadra da Doca, tomei conhecimento da existência de um certo “Boró”, um rapaz magrinho, moreno queimado pelo sol, cabelo encaracoladinho, sempre com umas bermudas enormes, presas à cintura por uma cordinha ou por um cinto, eternamente sem camisa. Diziam ter sido professor de matemática e que, por excesso de estudo, perdera a razão. Sua vida era vagar pelo bairro, pedindo um “boró”. Era cortês, quando recebia uma moeda e se aborrecia, se lhe negavam ajuda. Andava descalço, gesticulando, levantava os ombros e enfiava a cabeça no pescoço. Falava sozinho. Eu sentia tanto carinho por aquele rapaz de feições finas e olhar agressivo, que não saberia explicar a razão. Acho que, no fundo, a liberdade de pessoas que explodiram por dentro era tudo o que mais desejei na vida.

Mais recentemente, surgiu o “Viado da Bike’. Não aceito essa forma de tratar um homossexual, mas não houve jeito. Até na cédula de votação constava como registro. Com gestos afeminados, ajeitando uma inexistente cabeleira ao vento, fazendo caras e bocas, sempre sobre sua bicicleta, chamou atenção da cidade por uma deformação lombar, que bem poderia ter lhe valido o apelido de peito de pombo. Mas os trejeitos exagerados se impuseram.

Nascido no Piauí, em 1956, não terminou o ensino fundamental e, no portal da Justiça Eleitoral, de onde retirei essas poucas informações, consta que teve várias ocupações, mas não especifica nenhuma. Nas últimas eleições, foi candidato a deputado estadual pelo “Solidariedade” e conseguiu 1.280 votos, insuficientes para ocupar uma cadeira no parlamento. Um pouco mais, se elegeria vereador de Belém.

Várias vezes o encontrei no supermercado. Ele gostava de conversar com os rapazes que pesavam frutas e verduras. Numa das ocasiões, estava mais alterado do que de costume e bradava contra a Lei “Maria da Penha”. Repetia, como um disco arranhado, que mulher que não gosta de apanhar não é mulher. Aí fazia uma revelação, que não parava de repetir. Dizia que, todos os dias, levava uma surra do marido. Quando não apanhava espontaneamente, implorava pela agressão, sentia falta da porrada noturna. Ele precisava tanto de sexo, quanto de violência. Depois narrar suas intimidades, voltava a fita: “mulher que não gosta de apanhar não é mulher. Essa Lei “Maria da Penha” tem que acabar”. Curiosamente, não trazia marcas de espancamento.

Nas redes sociais, soube que o pobre perdeu a mãe há mais de 40 anos e o pai, que gostava tanto de cachaça como de mulher, não cuidou de sua educação. Desprezava-o. Sozinho no mundo, descobriu que tinha uma irmã em Belém. Escreveu uma carta para ela e há mais de 40 anos mora aqui. Surpreendentemente, não se assume como gay e diz que desmunheca apenas para chamar atenção. Quando mexem com ele, faz um adeuzinho safado, olha por cima do ombro, joga beijo e aponta para as próprias nádegas arrebitadas. Garante que a afetação só acontece quando pedala e que ganha dinheiro capinando quintal, ou fazendo limpeza.

Nunca mais vi o Maxico, o Borozinho e o Viado da Bick, que se chama José Américo da Silva. A pandemia me prendeu em casa por quase 120 dias. Já voltei a sair, mas com todos os cuidados. Um dia desses, enquanto dirigia pelo meu antigo bairro, me lembrei de todos eles. Espero, de coração, que não tenham pegado Covid e que, dentro do seu possível, estejam bem.

Sem eles, Belém não fugirá ao seu destino de terra do já-teve.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Oswaldo Goeldi — Figuras, sem data. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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1 comentário Deixe um comentário

  1. O Cheira-Éter passava todos os dias na janela da minha casa, na Dr. Moraes. O cheiro chegava antes e permanecia por tempos depois de sua partida…

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