Ruy Meira: Menino de engenho feito de barro especial

João Carlos Pereira

Gosto muito da idéia de que Deus criou o homem a partir de molde de barro, pelo simples fato de que isso faz de Deus não apenas o maior escultor de todos os tempos, como o mais criativo e sensível, porque produziu modelos para todos os gostos, artesanalmente, em escala industrial, desde que o mundo é mundo. Não sou criacionista, nem terraplanista, nem nada que remeta a esse tipo de pensamento. Também não fico enlouquecido de entusiasmo com o evolucionismo. Prefiro pensar. Imaginar. E por isso formo na mente a ideia de Deus moldando no barro os contornos de um homem chamado Ruy Augusto de Bastos Meira. Sabendo a quem estava dando a poesia, a pintura e a escultura da melhor qualidade, deixou um pouco mais de barro, de tinta e de palavras em suas mãos, a fim de que esses dons nunca lhe faltassem.

Ruy era engenheiro e urso. Uma espécie de Ruben Braga dotado de muito mais simpatia. Gostava da vida recolhida, em família ou com amigos. A arte era o exigênio de que se valia. Ele me dava a impressão de viver entre os ombros. O bigode branco e farto, o olhar fatigado, mas encantado e encantador, quando encontrava um interlocutor que valesse a pena, os cabelos puxados para trás, os dedos grossos, a fala rouca e a dicção mais voltada para dentro do que para fora eram o que se podia ver. Internamente, Ruy era pura luz. Um deus em construção, eu diria.

O homem tímido conseguiu ser referência de arte moderna no Pará. Sem ele, sem Benedicto Mello e sem João Pinto, ou estaríamos vivendo o auge borratelismo modernoso, ou copiando o que se fazia lá fora, na gradação do muito ruim ao péssimo. Os três deixaram para trás o século XIX e inauguraram a modernidade no Pará.

Ruy era uma criatura afável e gentil. Mas eu não o chamada de Ruy, como todo mundo. Para mim, era doutor Ruy. Outro Ruy que veio ao mundo com as mãos encharcadas de poesia foi seu xará Ruy Barata, a quem eu também chamava de doutor Ruy. Mas a forma de tratamento não nos distanciava. Ele parecia não escutar a cerimônia e me permitia todas as liberdades de amigo.

Em sua casa, na Benjamin, havia um espaço onde uma das paredes parecia a folha de um grande caderno de autógrafos. Toda a agente ilustre que ia lá – falo de artistas, bem entendido – , mas sobretudo os amigos queridos, assinava. Um painel enorme, repleto de nomes preciosos. Uma vez, ele me pediu que deixasse meu nome lá. À Ana Diniz também, que também era sua querida amiga. Depois de que se foi, a casa foi alugada. Nela se instalaram alguns restaurantes e nem imagino, ou melhor, nem quero imaginar, o destino que teve aquela parede.

Na casa onde cresci, havia uma parede enorme, coberta por um painel de azulejos com motivos de gaivotas. Elas voavam largamente diante de um céu azul, com muitas nuvens. A parede ia de alto a baixo e dava a impressão de que as gaivotas realmente estavam ali. Emoldurando a banheira de mármore que havia no banheiro, existia uma proteção estética feita com enormes peças de cerâmica, com ninfas vestidas de branco, dançando com suas roupas vaporosas, sensuais. Foram as primeiras a conhecer a morte. Por causa da infiltração, acabaram com a banheira e com as ninfas, como se fosse azulejinho vagabundo. Depois que venderam a casa, foi tudo para a “chom”. Virou entulho. Naquela época, eu não sabia o valor daquelas peças. Espero que a parede de Ruy Meira tenha merecido um destino melhor.

Uma vez, disse a ele que gostaria de aprender a fazer cerâmica. Marcamos um sábado depois do almoço. Não consegui sair do jornal a tempo e me desculpei. No outro, precisei trabalhar. No terceiro, estava tão cansado que furei. No quarto, ele parou de insistir. Quando completou dois meses do primeiro convite, ligou, bem-humorado, recordando a data. Fez isso no sexto mês e no primeiro aniversário. Eu não tinha mesmo vergonha na cara. Ser aluno de Ruy era um sonho de qualquer pessoa. Eu perdi essa chance.

Sempre que viajava, perguntava se queria alguma coisa. Invariavelmente pedia barro. De uma temporada que passei em Santarém, trouxe um barro que fui cavar já não lembro onde. Dele, Ruy extrairia uma tonalidade cor de rosa. Suas tintas eram artesanais e ele conhecia as entranhas da terra. Não usava corantes artificiais nas esculturas de barro. Soube de alguém que lhe ofertou barro extraído da borda de um vulcão italiano, para que dela retirasse uma tonalidade rara.

Ruy Meira gostava de conversar e de tomar uísque. Quando foi proibido de fumar, avisou que, se passasse de uma certa idade, entraria no lucro da existência e voltaria ao vício. Morreu antes de retornar ao raro prazer do tabaco. Como ceramista, desenvolveu técnicas que eram apenas suas. Misturava casca torrada e transformada em pó chamada caribe. A forma de queimar as peças era única. Ele se grudava ao forno e ficava lá, às vezes, um dia inteiro, de olho no pirômetro. Em seu sítio, a tarefa era mais agradável, porque havia uma piscina e podia conversar com amigos, entre os quais Benedicto Mello, o mais fiel, aguardando o resultado. Enquanto isso, tomava uísque.

Frederico Barata, que era crítico de arte, foi seu grande incentivador. Com João Pinto e Benedicto Mello trocava ideias e experiências. Eram longas horas, jornadas intermináveis de pintura ou trabalho com barro. Ele gostava de dizer que o barro era de tal forma plástico que, quem o visse trabalhando, tinha vontade de colocar a mão na massa e, quem sabe, até de comer. Tinta comprada feita não usava e, se eventualmente alguma peça rachasse, ele comparava ao nascimento de filho que veio ao mundo já morto.

A poesia era o exercício estático mais solitário de todos. Ruy era tão habilidoso com pinceis, espátulas e manejo do barro quanto com as palavras. Sua poesia era densa, sofrida (o que dizer de um livro chamado “Mar sem água”?), tão trabalhada como as formas do barro e a pintura. O trato com o verbo se fazia exaustivo e rigoroso. Depois de ler seus versos, tinha a impressão de que ele poderia dizer, como João Cabral: “saio de meus poemas como quem lava as mãos”.

Como José Lins do Rego, ele também não foi menino de engenho. Mas diferente do autor de “Menino de Engenho”, não foi “menino perdido”. Foi menino iluminado. Cresceu dentro do mato, olhando o canavial. Fez tudo, do menos ao mais, que um menino de engenho é capaz de viver. Sua cerâmica não passou perto do estilo Vitalino, mas ele também criou bonecos. Os homens feitos de barro, pelas mãos de um artista vário, profundamente humano, essencialmente genial, ganharam vida não da forma nordestina, mas de um jeito universal, em formas até então inexistentes na natureza ou criadas por outras mãos.

Ruy foi tudo e em tudo perfeito. Grande artista, grande amigo, grande ser humano. Quando um crítico baiano o chamou de “monstro”, tinha a perfeita compreensão de sua universalidade.

Não por acaso, há pouco, o defini como um deus em construção.

E se os homens foram mesmo feitos do barro, com a vida lhe sendo soprada pela boca do próprio Deus, dá para imaginar que o Criador escolheu um barro especial para moldar Ruy Meira. Como melhor forma de se mostrar grato, escolheu o barro para produzir a beleza que leva a Deus.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Ruy Meira — Composição II, 1993

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