Um recital diferente no Theatro da Paz e o último pé na jaca (assim espero)
Diário de um desespero – ou quase – XCIX
João Carlos Pereira
Vêm de Barcelona as imagens surpreendentes de um concerto realizado no palco do Teatro de Ópera local, destinado a um público que, até então, jamais havia sido levado a um ambiente tão refinado, fosse lá ou em qualquer cidade do mundo: as plantas. Em todas as cadeiras reservadas aos amantes da boa música foram colocadas mudas de plantas.
Silenciosamente, como convém a uma platéia educada, 2.292 espécies, posteriormente doadas a profissionais da saúde, ouviram um quarteto de cordas executar “Chrysanthemum”, de Puccini, escolhido por sua tristeza que, em consonância com momento em que vivemos, evocava um réquiem. Ao final, faltaram os aplausos. Mas a hora não era de celebração, e, sim de pedir de desculpas à natureza pelo mal que o homem lhe tem feito.
É quase impensável que, por aqui, algo do gênero se realize. Abrir o Theatro da Paz, ou o Municipal, do Rio, ou o Teatro Amazonas, de Manaus, entre os mais bonitos do país, iria tocar o pânico no Patrimônio Histórico. Imaginem instalar mudinhas de mangueira ou de açaí em suas centenárias cadeiras, para, depois, plantá-las em locais onde a reposição é necessária ou não aconteceu. O mundo ia cair. Mesmo assim, fica a sugestão.
Se essa ideia sair do espaço dos sonhos e passar para a realidade, ouso sugerir um programa: a música “Minha Terra”, de Waldemar Henrique, seria apresentada na abertura. Em seguida, a Orquestra do Theatro executaria a suíte sinfônica intitulada “Floresta do Amazonas”, de Villa Lobos, composta nos anos 50 e interpretada por Bidu Sayão, na estreia, e, mais tarde, por Maria Lúcia Godoy.
Se o perfume da erudição parecer estranho a uma produção desse nível, posso lembrar que Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Djavan e Zizi Possi já gravaram algumas das canções da suíte, em versões adaptadas.E esses não são casos raros. Não quem não teve embalado um sonho de amor, ouvindo “Céu de Santo Amaro”, uma parceria de Flávio Venturini, responsável pela letra, com J.S Bach, autor da cantata 156, composta cerca de 280 anos atrás. Em casamentos, essa música é executava largamente e muita gente, que jura detestar música clássica, cai no choro, sem saber que está ouvindo Bach. A vida tem dessas coisas.
Dizem que o príncipe Charles, provável futuro rei da Inglaterra, gosta de conversar com plantas. Por essa razão, chamaram-no de maluco. Ignorando a insensibilidade da plebe, continua a falar com suas plantinhas. Com certeza elas têm mais a dizer do que muita gente à sua volta.
Conheço pessoas que também falam com seu jardim e até colocam música para as espécies que, segundo relatam, entendem e gostam do que “escutam”. Pelo menos nesses casos, a relação homem x natureza está preservada saudavelmente. Pena que ainda sejam poucos os que acreditam nessa forma de diálogo amoroso.

Sou displicente e não cultivo plantas ou horta em casa. Mas temos alguns vasos com orquídeas que, duas vezes por ano, enchem nossa casa de alegria e de beleza. Praticamente vemos orquídeas na sala o ano todo. Não trocamos ideias, mas elas percebem, pelo meu sorriso, o quanto são bem-vindas.
Pé na Jaca
Fazia tempo que eu não metia o pé na jaca com tanta vontade como na crônica de ontem. O assunto era Paris e, segundo um atentíssimo leitor, fico tão empolgado quando falo na cidade escolhida para compor meu nome de email (pode haver prova de amor maior do que essa?), que troquei alhos por bugalhos e escrevi andares em vez degraus.
Ao descrever o tamanho da Torre Eiffel, disse que eram 702 andares, quando deveria ter falado dos degraus. A velha dama de ferro possui apenas três andares. O leitor mais atento percebeu a jaca no caminho, mas relevou.
Espero que tenha sido o último pé na jaca desta série que termina amanhã. Como ainda resta uma crônica para fechar as 100, há chance para mais uma lomba digna de reparo.
Como se diz em Paris, não foi grave. Mas é bom corrigir.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Claude Monet — Le bassin aux nymphéas, harmonie rose, 1900. Musée d’Orsay, Paris, France.
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