Paris em forma de gente não precisa do normal. Nem do novo normal.
Diário de um desespero – ou quase – XCVIII
João Carlos Pereira
Toda vez que escuto alguém dizer que “Paris é uma festa”, sem talvez imaginar que esteja se referindo ao livro de Hemingway, tamanhas foram as pernas que a frase-título ganhou, penso comigo: essa criatura conheceu Paris, olhando-a do segundo andar daqueles ônibus de turismo, assistiu a um show no Lido, fez foto na frente do Louvre, enfrentou muitas horas de fila para subir ao segundo andar da Torre Eiffel e deixou de lado o melhor de Paris. Mas quem não fizer isso, não poderá dizer que esteve lá.

Paris nem sempre é uma festa, assim como também não é uma cidade, mas a reunião de várias cidades, que são seus bairros. Cada um é bastante diferente do outro. Juntos, formam uma idealização do turismo consumada pela História. A Paris de verdade é humana como todos nós e não apenas um cenário feito de cartões-postais. Sei disso porque já a vi com os mais variados semblantes e humores. Armada até os dentes, por medo do terrorismo. Coberta de sujeira, quando a Prefeitura resolveu lacrar as lixeiras, temendo bombas. Florida, resplandecente, ensolarada, chuvosa, sombria, outonal, com lâmina de gelo e neve sobre os carros. Paris nem sempre é uma festa. Paris é gente.
A alegria a que o escritor americano se referia pode ser vista como uma homenagem à cidade onde esteve nos anos 20, do século passado, e lhe proporcionou não apenas a possibilidade de ler os clássicos, como estar perto de pessoas como a colecionadora Gertrude Stein, o poeta Ezra Pound e o romancista James Joyce. Hemingway gostava de dizer que “Paris sempre vale a pena e retribui tudo aquilo que você lhe dê”. Nada mais certo. Quem antipatiza com os parisienses, não recebe deles sequer um olhar gentil. Mas quem os cativa com um simples bonjooouuuuur, ou um sorriso e um merciiiii ganha um amigo.
A maior prova de que Paris não é uma festa permanente, como se acredita, vem do fato de a cidade estar em festa. Ora, se ela está, é porque não é, não vive o tempo em estado de pagode. Essa alegria vai e vem. Agora ela veio e é devida à notícia de que, esta semana, a Torre Eiffel e o Museu do Louvre voltarão a receber visitantes.
Do jeito que serão entregues novamente ao público, os dois lugares vão tirar dos turistas muito mais do que suspiros de encantamento. Haverá mesmo é gemidos de cansaço. Para chegar ao segundo andar da Torre de 324 metros, mais 15 centímetros de dilatação do ferro, no verão, o excursionista precisará usar as escadas, porque os oito elevadores estão desligados. Ao todo são 704 andares e o ingresso ficou mais barato. Descobrir cada um dos pisos é uma experiência rara, mas ninguém precisa fazer isso duas vezes na vida.
Bom mesmo era quando se podia ficar pertinho dela, deitado na grama, olhando suas pernas abertas e descobrindo-lhe as intimidades. Depois que foi cercada como forma de evitar ações criminosas por parte do terror, esse tipo de visão ficou comprometido. Chegar ao alto da Torre, pelo menos por enquanto, exige bom preparo físico.
Para entrar no Louvre, depois do dia 6 e até a vacina contra o coronavírus existir, vai ser um protocolo e tanto. Não imagino qual o pior cenário, se as filas intermináveis ou fazer agendamento e esperar uma data, da mesma forma como se aguarda uma consulta com médico. O Louvre é uma prova de paciência e boa forma física. Tudo nele é monumental e, às vezes, me deixa saturado de tanta beleza. Não gosto de museus aos quais já se chega derrotado, com certeza de que nem tudo será visto. Nesse aspecto, o Hermitage, de São Petersburgo, é mais acessível, mais humano, digamos assim.
No dia em que puder voltar lá, vou querer passar um bom tempo admirando o código de Hamurabi e tentar entender melhor sobre classes sociais, comércio, propriedade, família, trabalho, roubo, lei do talião (que prevê olho por olho, dente por dente), estupro, pena de morte e mais um monte de coisa. Vai ser aprendizado por contemplação, porque ler aquilo, só nascendo outra vez para aprender.
Mas o melhor da visita será a revisita em plena paz à Mona Lisa. Antes da peste, se alguém caísse morto, vitimado pela emoção de olhar La Gioconda, o cadáver seria empurrado pelas turbas até um cantinho da sala, não por piedade, mas por conveniência, até a hora do fechamento da sala. Só então se daria pelo inusitado. As pessoas não veem aquela criatura misteriosa e sem sobrancelhas sobre um cenário estranho. Fotografam-na para admirar em casa. Fazem selfie para provar a elas mesmas que estiveram lá e conseguiram chegar muito perto do quadro mais famoso do mundo.
Olhar a Mona Lisa era uma prova de paciência. A galera passa indiferente pela Vitória de Samotrácia e pela Vênus de Milo, porque tem fome e sede de Mona Lisa. No corredor que conduz à sala do trono, onde ela reina absoluta, atrás de uma placa de vidro, há uma série de pinturas de Leonardo. Mas quem liga para isso? Aliás, quem é Leonardo? O povo quer mesmo é a Mona Lisa. O resto é enfeite. Talvez a pandemia tenha produzido um pequeno bem a quem gosta de arte.
Quando o novo normal desaparecer e o normal retornar à cena, trazendo de volta as legiões que sobem à Torre Eiffel e se danam diante da pirâmide do Louvre, Paris continuará a ser um cartão postal e seu encanto mais verdadeiro estará preservado nas ruas verdadeiramente suas, sem turistas, sem aglomerações. Não por causa do medo da pandemia, mas porque, ao natural, ela é assim. Tirando o metrô, é claro.
Convém aproveitá-la agora.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Tour Eiffel : Montage des piliers au-dessus du premier étage (15 mai 1888)
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