Janelas abertas para a vida e para a chuva

Diário de um desespero – ou quase – XCVII

João Carlos Pereira

Não sei explicar o que foi aquela chuva de ontem. Parecia uma sobra respeitável do dilúvio, quadrada em algum lugar secreto da caixa d´água de São Pedro, que o santo, em missão de desapego, resolveu despejar sobre Belém. O propósito era mais divino, com certeza: aliviar o calor, que não anda fácil. Mas a chuva – meu Deus do céu! – dava a impressão de que não ia acabar nunca mais. O que era para chover em um mês, choveu ontem.

Na hora do almoço, a previsão do tempo mostrada na televisão anunciava que a possibilidade de precipitação, para usar a linguagem da meteorologia, era de 67%. No final da tarde, olhei para o lado da estrada e vi umas nuvenzinhas. Não havia cara de mau tempo. Mais tarde, elas já começavam a ganhar forma e densidade. Talvez chovesse, mas não era certo. De repente começaram as preliminares do temporal. O chamado e temido “vento de chuva” invadiu meu gabinete, proporcionando um refrigério que ar-condicionado nenhum consegue reproduzir. Os papeis voavam e eu me deliciava com aquilo.

Aos 61 anos, só quem me adverte com “não pode” , e eu aceito, mesmo assim com restrição, é médico. Dos demais, o aviso entra por um ouvido e sai pelo outro. Na minha infância, repleta de “mão pode”, “é proibido”, “é feio”, “o que vão dizer?”, “Papai do céu castiga”, vento de chuva não podia, era proibido, fazia adoecer. Acho que se tratava de doença psicológica, contraída por um misto de medo e de ignorância. Muito ventinho de chuva deixei de tomar por causa das sábias restrições domésticas. Ontem, mantive a janela aberta o quanto pude. Quando a chuva começou a invadir, com fúria, minha sala de estudos, tive de me privar desse prazer, porque adoro vento de chuva.

Nasci uma casa repleta de janelas. Na fachada eram apenas duas, ou três, não lembro bem, com duplas folhas internas. Havia a janela de fora e uma espécie de porta de alto a baixo, de madeira, dobrável em quatro partes, que fazia o papel de cortina e dava maior proteção. Eram guarnecidas por uma tranca de pau que, durante o dia, ficava escorada na parede. De noite, reforçava os cuidados de sua função. “Já colocaram a tranca?”, perguntavam. As portas e janelas eram “trancadas”. Hoje, trancar a porta significa passar a chave, porque tranca não se usa mais. Na parte interna do imóvel é que morava o perigo.

No longo corredor de nossa casa, na rua João Diogo, no mesmo quarteirão do quartel dos Bombeiros, havia, de um lado, os quartos, alguns com janela, outros sem nenhuma abertura para o mundo, exceto a porta. Do outro, janelas a perder de vista. Do forro até o meio da parede descia um painel de vidro em forma de mosaicos emoldurados por uma madeira fininha. O propósito era clarear o ambiente. A partir dele surgiam as janelas que se abriam de par em par, com persianas de madeira e, acreditem, dobradiça para o lado de fora. Ah! Grades não havia. Estética, dez. Segurança, zero.

Naquele tempo, falo dos anos 50, 60, ninguém tinha cuidado exagerado com ladrão. Eles agiam, sim, mas no quintal, roubando galinhas. Era impensável que um gatuno destruísse tão frágil proteção ou retirasse os parafusos das dobradiças para entrar. Só muito tempo depois foi que a bandidagem aprendeu a sacar as persianas e fazer passar por elas um menino magrelo, que entrava na residência, tirava a tranca e abria a porta para os comparsas. Foi assim que invadiram outra casa em que morei.

Quando a chamada “chuva das duas” poderia ter sido transformada em Patrimônio Imaterial de Belém do Grão Pará, mas nem se falava disso à época, ninguém tinha o cuidado de olhar o relógio – porque a chuva era o próprio relógio – para ir fechando a fileira de janelas. Todo dia era a mesma correria, a mesma gritaria: “fecha as janelas”, “fecha as janelas”, que está chovendo.

Hoje, eu só fecho as janelas quando é absolutamente necessário. Não tenho medo da chuva, que tanto amo. Quando ela chega com vento, muito vento passando pelas frestas, ouve-se um assobio grosso, diferente do da Matinta Perera, que é fino e agudo. O do vento molhado é gutural, grosso e denso. Às vezes afina, é verdade, dependendo do espaço que encontra para passar. A orquestra da natureza é uma coisa impressionante.

Nossa arquitetura ainda parece pouco harmonizada com a região. O prédio onde moro pelo menos é. Se chove, temos que fechar tudo e perdemos o frescor externo. As sacadas ficam inundadas, porque o volume de água é intenso e o “ralo” não dá conta de absorver tudo. É mais água entrando do que saindo. Impossível sentar para assistir à chuva, porque o vento empurra o temporal para dentro. Resultado: fica um calor terrível, enquanto, lá fora, o clima está uma delícia.

Ainda temos muito que aprender com a vida que vem do alto, em forma de vento e de chuva. Fechar a janela, em todos os sentidos, é dizer não à felicidade.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Ronaldo Miranda — Janelas, Casas, Almofariz, 2008. Enciclopédia  Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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