Transfiguração de Jesus e Transformação do Sofrimento
Cyril Suresh, SJ
1. Introdução
As narrativas bíblicas sobre a Transfiguração do Senhor Jesus estão nas leituras sinópticas de Mateus (17,1-9), Marcos (9,2-9) e Lucas (9,28-36). E no contexto litúrgico católico, a solenidade da Transfiguração ocorre duas vezes por ano. A primeira está no segundo domingo da Quaresma e a segunda no dia 6 de agosto. Em ambas, os seguidores de Jesus Cristo são chamados a aprofundar o mistério cristão do amor e a fortalecer sua fidelidade a Deus. É um exercício espiritual que pode trazer um efeito trampolim para um seguidor que dedica sua vida num ciclo espiral da liturgia teocêntrica da encarnação, missão e paixão do Senhor Jesus Cristo.
Adentrando pormenorizadamente o relato da Transfiguração podemos encontrar um alimento espiritual que suficientemente estimula-nos com um olhar copernicano da realidade humana, tão sofrida de crises multidimensionais, por exemplo, essa pandemia de coronavírus (Covid-19). Uma reflexão bíblica aqui pretende nos convencer de que uma mera aparência espetacular está bem longe da narrativa bíblica da Transfiguração. As implicações etimológicas do termo “Transfiguração” se detalham o verdadeiro significado da metamorfose bíblica. Para tanto, uma sequência de análise como prefiguração messiânica, subir a monte, descer a fonte e configuração cristocêntrica vai aprimorar o fluxo da nossa reflexão. Por fim, a meditação desse relato nos favoreceria ativamente uma autotransformação contínua do nosso ser neste mundo desafiado por violência, enfermidade e outros tantos.
Um vazio forte, entre outro, também faz o mundo moderno sofrer muito. Guy Luis Debard (1931-1994), que é autor de Sociedade do Espetáculo (1967), critica radicalmente o mundo atual e sua cultura capitalista, autocrática, midiática e consumista que fica sacudindo a humanidade desanimada, frágil e insegura. Segundo Guy, o verdadeiro espetáculo não é uma postagem de imagens virtuais na plataforma midiática, mas sim as inter-relações sociais humanas pacíficas mediadas por imagens vivas dos humanos e dos seres vivos. No entanto, o discurso artificial do espetáculo brutalmente silencia tudo o que é discretamente secreto, humildemente pequeno, virtualmente escondido, timidamente pobre e remotamente longe do alcance de quaisquer redes sociais e telecomunicações. O que está oculto não pode ser encoberto por muito tempo. O que está perdido não pode ser esquecido. O que é secreto não pode ser silenciado. O que está despercebido deve ser manifesto. O que está invisível tem que se tornado monstruosamente visível.
A ilusão das aparências espetaculares sufoca a vida real, humilde e oculta. O sistema dominador do palco não deixa respirar o que está no chão gemido. A afirmação de Jesus tem toda a razão: Tudo o que está escondido deverá tornar-se manifesto, e tudo o que está em segredo deverá ser descoberto (Mc 4,22); Ou ainda, a boca fala por fora aquilo de que o coração está cheio por dentro (Mt 12,34). O apelo desse contexto sofredor do mundo hoje clama para uma radical mudança de perspectivas e uma verdadeira transfiguração.
2. Conto da Transfiguração

Transfiguração é uma teofania que foi um espetáculo dramático, sem ser teatral de longa-metragem, com uma sequência de ações e palavras. Certa vez, um pouco antes da crucifixão, Jesus levou consigo apenas três de seus 12-apóstolos: Pedro, Tiago e João. E ele os levou juntos até uma alta montanha (Tabor!) e ali foi transfigurado diante deles. As roupas de Jesus se tornaram brancas deslumbrantes. Seu rosto resplendeceu como o sol, carregados de brilhos radiantes enquanto os apóstolos estavam sobrecarregados de sono e cansaço. No entanto, os apóstolos testemunharam profetas, Moisés e Elias, aparecendo em glória, entrevistando Jesus sobre sua paixão iminente. Pedro, o líder, embora não estava em sua plena consciência, disse a Jesus que seria maravilhoso permanecer ali no topo da montanha. E afirmou que se Jesus quiser, ele vai construir tendas para cada um deles abrigar. Enquanto isso, uma nuvem brilhante ofuscava a colina toda. Era tão dinâmico que eles ficaram completamente aterrorizados e entraram na nuvem com medo. Um som vivo ecoou da nuvem mística proclamando: “Este é meu Filho, o amado, o servo escolhido com quem está o meu bom agrado; é bom escutai-lo!” Ao ouvir essa voz do céu, os apóstolos foram tomados pelo temor e caíram por terra. Entretanto, Jesus se aproximou gentilmente deles, firmemente tocou-os e enfaticamente disse-lhes para levantar-se e não ter medo, nunca. Ao serem encorajados por essas palavras, eles viram sem medo somente Jesus transfigurado e mais ninguém. Impregnado com essa teofania desciam daquele monte sagrado e Jesus ordenou-lhes para não contar a ninguém e ficar no silêncio sobre essa revelação mística até sua própria ressurreição, pois é uma comunicação divina (cf. Mt 17,1-9; Mc 9, 2-9; Lc 9,28-36).
3. Implicação Etimológica
Etimologicamente, a raiz da palavra transfiguração vem do verbo grego μεταμορφομαι que significa a metamorfose (Mt 17,2). É tudo sobre mudanças de forma e substância. Há uma conexão semântica e semiótica com uma galáxia de vocábulos transversalmente interligados. Por exemplo, na ciência, este vocábulo significaria regeneração nuclear, transmutação microbiana, configuração atômica, modificação genética, transposição quântica, proliferação viral, etc., na medicina, procedimento terapêutico, ressuscitação pulmonar, recuperação cardíaca, etc., na teologia, prefiguração profética, travessia pascal, êxodo renovador, remissão expiatória, transubstanciação sacramental, aliança conciliar, etc., na espiritualidade, cura interior, treinamento formativo, conversão espiritual, iluminação mística, etc., na psicologia, mudança comportamental, caráter formativo, refinamento emocional, reconstrução afetiva, reorientação e aconselhamento etc., na política, transformação social, revolução ética, inovação sistêmica, readaptação progressiva, desenvolvimento rural, etc., e na educação, inovação pedagógica, mudança paradigmática, reforma copernicana, alteração metodológica, transmissão tecnológica, etc. Aqui, este eixo polissêmico da metamorfose vai sustentar a principal reflexão da transfiguração.
4. Metamorfose Bíblica
A fé educadora bíblica, tanto no Antigo Testamento (AT) como no Novo Testamento (NT), contém uma abundância de símbolos vivos que conectam Deus com o ser humano, especialmente no tempo de crise. No relato bíblico, algumas ocasiões prefiguram paradigmaticamente as perspectivas de mudança de ordem marco-mega para micro-mini da existência humana. Trata-se de uma força psico-espiritual que carreta de um espetacular espantoso para um ocultamento minúsculo, de um gigante visível para um desconhecido invisível e de uma soberba mentalidade de inadequação para uma humilde mentalidade de modéstia.
Esse dinamismo pode ser observado a partir dos relatos conflitantes, por exemplo, entre os libertinos egoístas e o Noah determinante durante o Grande Dilúvio (Gn 6-8), entre o poderoso rei egípcio Faraó e o pequeno sonhador José (Gn 39-41), entre o rei prepotente Faraó e o pastor Moisés de boca pesada (Ex 4-11), entre o gigante filisteu, Golias e o pequeno juvenil Davi (1Sm17), entre os 450-falsos profetas de Baal e Elias, o único profeta de YHWH (1Rs18), e assim por diante. Essas narrativas apenas revelam que qualquer autossuficiência e supremacia ideológica ou atitude megalomaníaca será reduzida ao pó e as pessoas insignificantes, tementes a Deus e obedientes, sempre serão protegidas e salvas, embora aparentemente em menor quantidade, mas significativamente fortes em qualidade.
O próprio Jesus em sua imbatível pregação parabólica comparou com perspicácia o Reino de Deus com a minúscula semente de mostarda (Mc 4, 26.31), com a pitada de fermento (Mt 13,33), com uma pitada de sal e um pedaço de luz (Mt 5,13). O Reino de Deus é um mistério oculto, e ao mesmo tempo, uma dinâmica vivificadora. Contém-se um contágio atraente com um vírus invisível. É quase imperceptível até a hora drástica da sua consumação.
Jesus exalta até a sabedoria inextinguível de ser uma criancinha que tem mais garantia para entrar no reino de Deus do que ser um adulto egoísta e acabado (Mt 18,3). Ele encorajou seus ouvintes a entrar pelo portão estreito que leva para a vida (Mt 7,13; Lc13,24). Sua sabedoria discreta sobre o reino de justiça e de paz de Deus está oculta aos poderosos, às autoridades, aos governantes inteligentes e às estruturas dominantes; no entanto, está revelado aos pequeninos e às pessoas comuns (Mt 11,25). O menor de todos se torna o maior de tudo (Mt 13,32). O maior de todos deve tornar-se o mais novo de todos, e o líder de todos deve ser o servo de todos (Lc 22,26). O primeiro será o último e o último será o primeiro (Mt 19,30; 20,16). O servo humilde e prudente se tornará dono de toda propriedade (Mt 24,47). A pobre viúva doa o melhor ofertório (Mc12,43). O Lázaro ferido é beatificado enquanto o homem rico indiferente é condenado no inferno (Lc 16,19-31). Os pecadores (cobradores de impostos, prostitutas) vão entrar no reino de Deus (Mt 21,31). Haverá mais alegria celestial por um pecador verdadeiramente arrependido do que por muitas pessoas justas que não precisam de arrependimento (Lc15,7). No leito vertical da morte, na hora última da cruz, o criminoso convertido entra primeiro no céu (Lc 23,43). Essas reviravoltas surpreendentes e messiânicas que Jesus faz têm um valor sapiencial e uma transformação clarividente. Assim, durante sua curta vida terrestre, ele abriu a boca para falar em parábolas pequenas e continuou proclamando o que havia escondido desde a fundação do mundo (Mt 13,35).
5. Metamorfose Prefiguradora
Um estudo paralelo entre Moisés do AT e Jesus do NT é surpreendentemente combatível. O contexto da instrução sobre os Dez Mandamentos, conforme narrado em Êxodo (20,1-21; 34,1-35), apresenta uma inter-relação de um trio especial: Deus-Moisés-Povo de Deus. Os duplos relatos do monte Sinai e do monte Tabor, com trovões e relâmpagos, som da trombeta e fumaça da montanha, nuvens escuras e medo avassalante, as tábuas e as cláusulas, a voz de Deus, os Mandamentos (Ex 20,1-17) e a voz de Moisés, “não tenha medo” (Ex 20,20), a inter-relação tríplice de Deus-Moisés-povo, etc. compartilham alguns traços caraterísticos da Transfiguração que acontece com Jesus-profetas-discípulos. Na verdade, Jesus foi instruído nos Dez Mandamentos na sua vida terrena e sua sabedoria leva Jesus à Transfiguração no Monte, uma glória antecipada de Deus. No passado, o rosto de Moisés estava brilhando e o povo o avistou (Ex 34,30). Semelhantemente, o rosto de Jesus brilhava como o sol e suas roupas ficaram brancas deslumbrantes (Mt 17,2). Moisés deu aos israelitas os mandamentos transformadores (a sabedoria) que ele recebeu de Deus (Ex 34,32). Também, Jesus deixa aos seus discípulos o seu mandamento do amor mútuo como o seu legado (Jo 13,34-35).
Profeta Moisés, o mediador da Torá e profeta Elias, o defensor do monoteísmo estrito, juntos tornam-se uma prefiguração desde AT que se alude à Transfiguração do NT. Eles podem ser interconectados analogicamente. É significativo perceber que Moisés e Elias, ambos aparecem na Transfiguração entrevistando Jesus. Moisés representa o livro da Lei (Torá ou Pentateuco), enquanto Elias representa os livros proféticos do AT. Estes dois representantes principais simbioticamente resumiram todos os livros do AT (cf. Lc 24, 27).
6. Subir o Monte
É recorrente que os aventureiros escalem a montanha, onde há templo sagrado, peregrinação, turismo e montanhismo. Subir ao topo da colina pode ser uma emoção passageira, bem como uma visão transformadora e panorâmica. A maioria das tradições religiosas tem o hábito de subir à montanha sagrada, a fim de proporcionar ao povo uma experiência profunda de obter saúde física, intuição mental e iluminação espiritual. Certas personagens bíblicas subiram a montanha e tiveram experiência transformadora. Hoje eles permanecem como exemplos inspiradores no momento dos conflitos e das crises humanitárias.
A — O Patriarca Abraão
A Bíblia oferece vários exemplos em que profetas e sacerdotes, em tempos de crise, não apenas fugiam para a montanha em busca de segurança, mas também subiam por se render em oração e implorar a orientação de Deus que poderia transformar o percurso da vida. Por exemplo, a experiência de Abraão no monte Moriá (Gn 22,1-14) autentica a aliança de Deus e a fé fundamental de Israel. Ali o encontro íntimo do trio Abraão-Isaac-Anjo com Deus da aliança prefigura algo da Transfiguração (Mt 17,1-9). A voz do anjo no Moriá e a voz das nuvens no Tabor oferecem um discernimento decisivo que transformaria o rumo da vida. Além disso, assim como Isaac, o filho predileto de Abraão que ia ser sacrificado, Jesus, o Filho único de Deus que vai ser sacrificado no monte. É o sacrifício da expiação, da remissão, da reconciliação e da aliança.
B — O Libertador Moisés
Em várias ocasiões, Moisés subiu à montanha para se encontrar com Deus. Ele foi ao deserto do monte Horeb (Ex 3,1) e ali teve sua primeiríssima teofania por meio da sarça ardente (Ex 3,1-12). O fogo brilhante da sarça e o calor espiritual manifestaram a presença libertadora de Deus. Ele também subiu ao sagrado monte Sinai para ouvir as clausulas da aliança de Deus que chamava as pessoas para serem uma assembleia consagrada e uma nação santa (Ex 19, 2-7). Deus disse que vai se aproximar de Moisés numa nuvem espessa para que o povo reunido possa ouvir quando falar com Moisés; houve trovões e relâmpagos, com nuvem densa sobre a montanha e com som alto da trombeta; o monte Sinai estava envolto em fumaça e Deus desceu ao topo da montanha (Ex 19, 9.16-21). Mais tarde, Deus convidou Moisés para entrar na nuvem e se aproximar do topo da montanha, onde Moisés ficou por 40 dias e 40 noites (Ex 24,18). A mediação de Moisés no Sinai é uma morfologia prefiguradora da intercessão de Jesus por sua igreja (Rm 8,34).
C — O Profeta Elias
Na tradição profética, Elias desempenhou um papel fundamental ao liderar a estrita adoração monoteísta a Deus. Ele reuniu todo o Israel no Monte Carmelo e lá triunfou sobre os 450-falsos profetas de Baal (1Rs18,18-40). Depois disso, ele foi ao topo do Carmelo para orar (1Rs 18,42). Assim como Moisés, Elias também passou 40 dias e 40 noites se encontrando pessoalmente com Deus no monte Horeb (1Rs 19,4-18). A teofania que Elias teve em Horeb contém algumas lições pioneiras na mística bíblica. A presença de Deus foi encontrada profundamente diante de uma gruta na montanha por meio de som de um silêncio fecundo e de uma brisa suave. O grande vento barulhento, o terremoto devastador e o fogo devorador enfraqueceram a presença de Deus que poderia direcionar o profeta. Existe ainda outra montanha importante mencionada na Bíblia. É Sião, uma colina ocidental de Jerusalém. Ela é uma designação principalmente poética e profética da cidade de Jerusalém, mencionada frequentemente no livro de profeta Isaías e dos Salmos. O monte Sião é o lugar onde YHWH, o Deus de Israel, habita (Is 8,18; Sl 74,2).
D — O Salvador Jesus
A narrativa do evangelista Mateus importantemente mostra que Jesus foi ao deserto logo após seu batismo para ser tentado pelo diabo e permaneceu ali por 40 dias e 40 noites (Mt 4,1). O diabo levou Jesus para o monte muito alto (Mt 4,8). Jesus subiu ao monte na proclamação do Reino (Mt 5,1). Ele subiu sozinho ao monte para rezar (Mt 14,23). Com povo ele fica no monte para restaurar a saúde aos doentes e multiplicar os pães ao povo faminto (Mt 15,29). Finalmente ele subiu ao monte Calvário na crucificação (Mt 27,31) e ao monte da Galileia no envio dos discípulos na missão (Mt 28,16). Portanto, subir a monte (Moriah, Sinai, Horeb, Sião, Carmelo e Calvário) é uma experiência de Deus que pode fortalecer o povo fiel através de uma transfiguração singular no contexto político-teológico-existencial da crise humana. O profeta Isaías canta magnificamente: “como são bonitos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz boas notícias, que anuncia a salvação, que diz a Sião: ‘teu Deus sempre reina’ (Is 52,7)”. Isto quer dizer que Deus está sempre próximo do seu povo e nunca o desiste.
7. Descer à Fonte
É claro que a experiência de subir ao qualquer monte possivelmente faz com que o povo da fé se encontre pessoalmente Deus. Num encontro tão pessoal, existe uma troca bilateral entre Deus e seu povo amado por meio das manifestações diversificadas, como por exemplo, a palavra falante, o som ecoante, a voz declarante, a chama ardente, a nuvem resplandecente, o vento abrasante, o rosto brilhante, o impacto deslumbrante, a cabeça inconsciente, o coração iluminante, a êxtase mistificante, o silêncio totalizante, a alegria indizível, etc. Todas elas revelam excepcionalmente a fonte da verdade essencial de que Deus está sempre mais próximo do seu povo com um amor onipotente. Uma verdade clarividente é a identidade íntima do “meu filho amado” que está mencionada três vezes no evangelho de Mateus: primeiramente no batismo com água (Mt 3,17); no segundo momento num âmbito da missão (Mt12,18) e finalmente no monte da Transfiguração (Mt 17,5). Essa intimidade tão amada é a fonte de vínculo da aliança com profunda admiração e unção sagrada.
Profeta Isaías retrata no seu cântico de amor sobre “o rosto” do amado servo sofredor de Deus (Is 52-53; 60-61). Embora tal rosto seja uma desfiguração total na hora da crucifixão, a voz da nuvem “meu filho muito amado” vai restituindo a revelação cristocêntrica – o amado, o escolhido, o único filho Jesus (Lc 9,35). Essa transfiguração sanificante resgata a identidade própria da relação e da missão de Jesus. Não foi o grupo de 12 discípulos participando nesta Transfiguração, mas sim, apenas três deles. É um grupinho nuclear de três discípulos que estão profundamente imersos num evento fundamental de escutar verdadeiramente a Jesus, filho e ativamente agraciar a Deus, Pai. Realisticamente um amor verdadeiro vai construir a tenda não tanto no topo da colina, mas sim, no coração do povo sofredor, não tanto subindo ao alto, mas sim, descendo no serviço ao povo. Isto é um esvaziamento de si dentro do paradigma de quênosis cristocêntrica. A Palavra de Deus se fez carne humana (Jo 1,14). Isto é armar tenda, ou seja, acampar-se e encarnar-se dentro da humanidade. Na cruz, o amor quenótico de Deus é demonstrado por meio do seu servo sofredor, filho amado, o pão descido do céu, Cristo Jesus (Jo 6,41; 1Jo 4,7-21; Fl 2,1-11).
Assim como a característica do descer para acampar a tenda no meio do povo que vive na terra, o significado da luz também é profundamente significativo. O sentido bíblico da luz é o brilho, que é mais uma energia interna do que externamente espetacular. É mais de qualidade espiritual do que de quantidade física. A luz branca deslumbrante da Transfiguração (Mt 17,2) é semelhante ao da casa construída no topo da montanha (Mt 5,14). É como aquele anjo no relato da ressurreição que anuncia a esperança radiante no meio da crise e da tristeza (Mt 28,3). A luz não está evitando a escuridão, mas está brilhando fortemente apesar da escuridão. Ser luz ao mundo está muito no brilho transfigurador do interior e não tanto do brilho exterior. Isto quer dizer, a luz descida penetra por dentro da pessoa. Tal luz é o próprio Jesus (Jo 8,12), que está tocando os discípulos com vigor do mandato imprescindível “levantar-se” ou “ressuscitar” e “não ter medo” (Mt 17,7). O verdadeiro caráter do discipulado de Jesus está sempre no levantar-se e nunca ter medo, isto significa não ter pânico paralisador no tempo de crise e de pandemia. O verdadeiro brilho da luz glorificadora está no amor fraterno e no serviço solidário através do exemplo de Jesus sem fim (Jo 13,1-35). Por isso, a vida sacrificada no serviço aos outros necessitados tem o brilho verdadeiro. A tenda de Deus que desceu a terra está permanentemente iluminada com uma luz brilhante do amor que radia o Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado.
A nuvem ofuscante é uma presença mística de Deus na cultura bíblica. Quase sempre, a teofania no AT tem o marco indispensável das nuvens. Deus coloca o arco-íris nas nuvens como sinal da aliança (Gn 9,13). E sua presença salvadora é constantemente vista na coluna de nuvens durante o Êxodo (Ex 13, 21; 14,20; Nm 14,14). Sua garantia de vida é percebida na nuvem que gera chuva (Jz 5,4). A nuvem é não somente um veículo de Deus (Ez 1,4; Sl 18,10; 68,5), mas também uma tenda de Deus (Sl 18,2;104,3), por exemplo, a nuvem escura que cobre o Monte Sinai (Ex 19,16) e cobrindo também o Tabernáculo (Ex 40,38). Às vezes, a nuvem está associada de maneira intercambiável ao céu. Por exemplo, o céu se abriu repentinamente quando Jesus foi batizado no rio Jordão (Mt 3,16). A nuvem descida ao monte de Transfiguração é um sinal indelével da aproximação íntima de Deus à humanidade (Mt 17,5;Mc 9,9;Lc 9,34). Até Jesus profetiza que sua vinda escatológica vai ser nas nuvens do céu (Mt 26,64; Mc14,62). Ninguém deve pensar que Jesus de pré-transfiguração e Jesus de pós-transfiguração são diferentes, assim como, Jesus de pré-ressurreição e o da pós-ressurreição. É porque, Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e será sempre o mesmo (Hb 13,8). Ele é o Alfa e o Ômega, o Início e o Fim (Ap 22,13).
8. Metamorfose Configuradora
Num sentido espiritual e analógico, o exercício de configuração acontece num relacionamento íntimo em que os discípulos se imitam o seu mestre. Gradualmente, as pegadas de ensino do mestre vão remodelando os discípulos de acordo com sua imagem e semelhança. No passado, Deus criou os seres humanos à sua própria imagem e semelhança (Gn 1,26). Assim Deus viu o que havia feito, e tudo era muito bom (Gn 1,31). No evento da Transfiguração, os discípulos são chamados a ser reformado na imagem e semelhança de Jesus. Portanto, a palavra do Pedro, “Senhor, é bom ficarmos aqui” (Mt 17,4) e sua vontade de construir três tendas para permanecer no monte Tabor requer a intervenção decisiva de Jesus de guiar os discípulos para outro monte, que seria o do Calvário. Tal pai, tal filho; também tal mestre, tal discípulo!
Jesus prediz três vezes o seu sofrimento na cruz (Mc 8,32-34; 9,30-32; 10,32-34). Sem compreendê-la, Pedro rejeita a cruz (Mc 8,32). Não existe amor sem dor. Sem o caminho desfigurador da cruz, não há caminho transfigurador da glória. O caminho para a ressurreição necessariamente passa pela paixão na cruz (Lc 24,46). Na metamorfose divina, Jesus vai transformar o corpo da humanidade sofrida e humilhada, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso (Fl 3,21).
Talvez o diálogo celestial entre o trio mestre, Jesus-Moisés-Elias diante do trio discípulo, Pedro-João-Tiago, tem a ver com o grande êxodo iminente da paixão no monte calvário fora de Jerusalém. Nesse sentido, a experiência transfiguradora no topo da montanha não é absolutamente última e derradeiramente perfeita, nem para Jesus nem para os seus discípulos. Por isso, a expressão “seis dias depois” (Mt 17,1) no evento da Transfiguração se alude ao número seis que tem um significado simbólico de incompletude. Quer dizer que este evento é bom, mas ainda não está completo ou definitivo. É um ensaio antecipatório experimentado antes do próximo evento completo, a paixão cristocêntrica seguida por ressurreição. O discipulado de Jesus é uma metamorfose contínua, em outras palavras, a cristo-morfose que contagia cada discípulo fiel contra o autocentramento de si e convida-o transcendente e desinteressadamente participar da encarnação, da proclamação, da transfiguração, da paixão e ressurreição de Cristo. Tendo se entregado pessoalmente à dinâmica da metamorfose cristocêntrica, Apóstolo Paulo declara ardentemente aos Gálatas que está sofrendo como dores de parto, até que Cristo esteja completamente formado neles (Gl 4,19).
Martin Heidegger (1889-1976) é o proponente do pensamento meditativo e do pensamento calculador. Segundo ele, a fuga do pensar meditativo é base da falta do pensamento profundo ou falta de sentido da vida. É causa de desenraizamento. E uma terrível ausência de planos de longo alcance, pesquisas significativas, procuras apaixonadas e anseios metamórficos possivelmente priva o mundo moderno do significado de profunda alegria e realização. O sentido profundo reina intimamente em tudo o que existe. O mundo hoje precisa de uma reaproximação meditativa da vida, em vez de uma abordagem capitalista e calculista. O estabelecimento de uma metamorfose contínua no labor oculto do coração humano é necessário para uma transformação do sofrimento do ser humano, que pode encontrar o seu significado profundo em Cristo Jesus. Assim, a Transfiguração de Jesus inspira o mundo atual na sua possiblidade radical de criar o mundo novo e transfigurado das suas carcaças de preconceitos e dos restos mortais sacrificados pela pandemia (covid-19) violenta. O amor transfigurador até pelas forças minúsculas do batimento cardíaco encaminha o mundo para saúde e salvação pulsando-se pela caridade e pelo humanismo. Que o rio purificador do monte Tabor renove a vida do povo com compaixão e cura e a coluna da nuvem brilhante deste monte ilumine o coração dele com sabedoria e vigor no caminho da transfiguração.
Cyril Suresh Periyasamy é padre jesuíta, vigário da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em João Pessoa (PB). Ensina Sagradas Escrituras no Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Nasceu na Índia, onde graduou-se em matemática e fez pós-graduação em filosofia. No Brasil, graduou-se em teologia na Faculdade dos Jesuítas de Belo Horizonte, onde fez mestrado em teologia bíblica. [saiba mais]
Imagem: Claudio Pastro — Transfiguração
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