Caminho no escuro sobre a ponte imaginária

Diário de um desespero – ou quase – LXXVI

João Carlos Pereira

Esta é uma crônica toda feita de angústia. Não recomendo sua leitura. Tem a alma dilacerada pela noite e suspira profundamente. Olha assustada para os lados e em tudo consegue ver o que apenas os microscópios podem alcançar. É uma crônica sofrida, inquieta, aflita, atormentada, desassossegada, ansiosa, impaciente e triste. É uma crônica do medo. Essa crônica, de vez em quando, sou eu.

Há dias em que amanheço bem, mas nunca com a bateria completamente carregada, como a do meu celular, que passa a noite ligado na eletricidade, para enfrentar um dia inteiro de mensagens, videozinhos, ligações, zaps, lives, avisos, comunicados e tudo que transforma a vida numa angústia maior ou, por alguns minutos, até a alivia. Esta crônica, pelo menos por agora, faz parte daquilo que aperreia. Não recomendo prosseguir.

As horas às vezes até passam depressa. Quando vejo, já tem mesa posta e comida servida. Quase impossível não dormir a sesta, mas sempre o sono é maior. O despertador me avisa que não posso perder tempo, porque não sei se ainda terei tempo a desperdiçar com soninho que nada repara ou repõe, mas é necessário. Escrevo alucinadamente. Preparo aulas que ministro remotamente. Leio dois, três livros ao mesmo tempo. Vejo filme, série, novela. Escuto música clássica, porque até a voz dos cantores me aperreia. Arrumo meu escritório e vou ao fogão. A dieta que comecei há três semanas me obriga a ter a disciplina que não tinha. Rezo. Rezo muito. Não deveria ter medo, mas tenho.

Estou evitando assistir aos noticiários, porque temo ver a notícia da minha morte. Não deveria escrever isso, mas escrevo. Estou muito triste. É coisa de hoje, de agora, provavelmente, mais tarde, estarei bem, rindo de alguma bobagem, me distraindo com qualquer coisa. Vem e passa. O corona vírus, mesmo não instalado, provoca muitas alterações no humor. Em mim, pelo menos, o efeito é terrível.

De noite, antes de me aquietar, me ajoelho diante das imagens do Cristo crucificado e de Nossa Senhora de Nazaré para agradecer por ter vivido mais um dia. Digo vivido, mas o certo é sobrevivido. Cada amanhecer é um sinal de esperança, que nem sempre funciona bem. Final da tarde, geralmente, estou liquidado emocionalmente. Mais uma jornada ficou para trás. E a outra, haverá outra?

Sei que gasto energia inutilmente, porque apenas Deus conhece o meu prazo de validade. Não raro, me lembro da história do homem que, andando na montanha, escorregou e caiu no que achava ser um precipício. Havia duas opções: ou largava do galho que o sustentava, entregando-se à confiança no imponderável, que também pode ser chamado de Deus, mesmo sendo noite fechada; ou ficava ali, como um pêndulo imóvel, ao sabor dos ventos e da descrença. Uma voz interior recomendava que soltasse o galho e se entregasse à vida. Preferiu a segunda opção. Veio o frio e a criatura morreu congelada. Foi encontrado a um palmo de uma plataforma, que daria acesso ao vale, onde encontraria abrigo, comida e uma bebida quente. Entre a coragem e a morte, preferiu a morte. Entre a fé e o desespero, escolheu o desespero.

Já me disseram que a fé é o salto no escuro e a caminhada segura sobre o vazio, como se o terreno fosse claro e aplainado. A fé é a certeza no reino do impossível e do improvável. A fé é um sim, numa floresta feita de nãos.

De vez em quando, me dá uma vontade de desafiar o vírus e me soltar, sem máscara, sem nada, no Ver-o-Peso. Não que o mercado seja um foco da doença, mas é que está lotado, como não deveria. Eu iria de peito aberto comprar peixe e pupunha. Seria uma forma de dizer ao maldito corona: vem, me testa, me mostra se posso resistir à tua força ou se és menor do que eu. Graças a Deus que não tenho essa coragem. Melhor ficar quieto, em casa, onde o bicho pode ser detido.

Mesmo assim, o medo é grande. E há dias em que ele escapa ao meu controle, vaza pelos dedos, passa pelo teclado do computador e vai se instalar no texto. Por isso uma crônica tão angustiada, tão consumida, tão debilitada. Tão eu mesmo, neste sábado de absoluto silêncio e extremamente ventilado. Por ela, peço desculpas. A de amanhã será bem melhor, prometo. E a de segundo estará animada pelo São João que não teremos.

O verão parece que chegou, trazendo seu atenuante – o vento. Não está claro se as chuvas foram de vez, porque tem caído cada toró, ou se entraram em ritmo de despedida. Seja como for, já sinto saudade dos dias nublados, sem sol, com muita chuva a qualquer hora do dia.

Sou, como sabeis, ave noturna. Prefiro as horas mortas, o silêncio, a brisa que invade a casa, quando todos dormem.

Meu estado de espírito não depende do sol ou da chuva, porque sempre sou habitante de um outono imaginário. Meu cenário são a noite, o frio e a chuva. O resto é faz de conta, porque viver é preciso. Cada vez mais.

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Vincent van Gogh — De sterrennacht [A noite estrelada], 1889 — Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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