O sino que traz sons do passado

Diário de um desespero – ou quase – XCVI

João Carlos Pereira

Vem de muito longe, dos meus tempos de menino, o eco dos sinos.

Primeiro foram os da Catedral. Depois os da Basílica, ao som dos quais cresci, amei e envelheci.

Os sinos de Nazaré ainda tocam músicas da trilha sonora de minha vida.

Com eles, ao longe ou mais de perto, senti a vibração que da terra se eleva a Deus. O coro dos badalos e das estruturas que giram por controle remoto cantam as alegrias da vida e dobram, pesarosos, quando necessário.

Houve um tempo em que os sinos da Basílica tocavam de quinze em quinze minutos. Durante o dia, quase não se percebia a regularidade. De madrugada, porém, com a cidade adormecida, os vizinhos do templo, sobretudo os mais sensíveis, não conseguiam conciliar o sono. Mal conseguiam fechar os olhos, o sino batia. Foi tanta reclamação, que a programação eletrônica precisou ser mudada.

Também da infância chegam, trazidos pelo sino, a voz do “cuscuzeiro”, que vinha com sua lamparina para aquecer os pequenos bolos feitos apenas com farinha de milho e água. A carrocinha do leiteiro igualmente tinha seu som. Era só escutá-lo, que as pessoas corriam para a porta com o litro de vidro ou a lata nas mãos.

Na porta de casa também passava o garrafeiro, um homem magro, feio, torto de tanto carregar peso nas costas, com um saco de sarrapilheira cheio de garrafas. Ele pagava uma ninharia pelos vasilhames, que eram revendidos não sei onde. Com as moedinhas que caiam em nossas mãos, conseguíamos sonhar com os cascalhos que vinham numa lata pintada de verde. O “cascalheiro” apenas ritmava seu triângulo de ferro, sem dizer uma única apalavra.

Os vendedores do sorvete Gelar batiam um sininho para avisar que estavam passando. No final da tarde, assistíamos ao desfile dos carrinhos, porque os “gelazeiros” passavam quase todos diante de nossa porta. O depósito da fábrica ficava no canto, ao lado da Casa Amazônia. Eles iam prestar conta do que venderam, devolver as sobras e os carrinhos.

Por um tempo, escutei um o ronco de um veículo que vendia um detergente de fundo de quintal, anunciada como “Q-Boa da boa”. Jamais comprei um litro sequer, não por respeito à marca original, criminosamente copiada, mas porque, quando conseguia descer, o vendedor já ia longe.

Também de manhã, bem mais cedo que o “quiboerio”, vinha um senhor que berrava algo que só entendia como “uxê”. Ele esticava a letra e, com som fechado: “uxêêêêêêê”. Eu não fazia a menor ideia do que se tratava. Uma vez resolvi esperá-lo. Quando chegou perto, vi que se era um simpático e pouco higiênico “bucheiro”. A criatura empurrava um carrinho de mão cheio de bucho e de outras vísceras. Pense numa decepção.

Os sinos da Basílica reproduzem a harmonia de uma orquestra. Às vezes, quando tocam pomposamente, me lembro de um poema de Bruno de Menezes chamado “Igreja do Arrabalde”. Nele, um sino pobrezinho, tocado, provavelmente, pelo sacristão, avisava aos devotos do bairro, numa língua compreendida apenas por eles, que: “domingo tem/domingo tem/domingo tem-tem-tem/ Quem quiser vem/ Quem quiser vem/ Quem quiser vem-vem-vem”.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Ilmari Aalto — Sinos, 1914. Ateneum (Helsinki, Finlândia) 

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