São João a seco. Mas o banho da felicidade pode ser tomado em qualquer mês

Diário de um desespero – ou quase – XCIV

João Carlos Pereira

Hoje seria dia de tomar banho de cheiro, o “chêro-cherôso pra tirar o catingoso” e usar capelinha de São João. Nos meus tempos de menino, a essa regra juntava-se a fitinha vermelho amarrada no braço, orientação de minha “vovó” Francisquinha Menezes, mulher do poeta Bruno e mãe de uma ruma de amigos, cujo carinho já chega à terceira geração. Hoje não vou tomar banho de cheiro, o “Chêro-cherôso pra tirar o catingoso”, nem usar capelinha de São João, nem amarrar fitinha vermelha no braço. Hoje é dia de, mais uma vez, ficar recluso, preso, atado à vida que me cabe ter, vendo a hora correr lá fora, como se não houvesse corona vírus.

Ontem ainda me animei a ir ao Ver-o-Peso para comprar os matos necessários à preparação de um banho de cheiro, mas fui de tal modo advertido em casa que, aos 61 anos, me senti um menino que anuncia o plano para uma peraltice e vai sendo esculachado pela bisavó, pela avó, pela mãe, pelas tias e até por uma vizinha que, eventualmente, estivesse em casa tomando café e fazendo fuxico da vida alheia. Esculhambação em série, em cascata, escala decrescente, perguntas descabidas do tipo “estás ficando doido?”, “queres morrer?”, “tás brincando com coisa séria?”, “fica no teu canto”. Para todas as questões a resposta é só uma: não. E quanto a ficar no meu canto, não tenho alternativa.

Minha vontade, hoje, era fazer como sempre fiz: esperava a hora da maré para acompanhar a chegada dos barquinhos ao Ver-o-Peso, lotados de mato, cascas, raízes, batatas e essências entregues aos erveiros. A tradição é que se compre o banho na véspera de São João para tomá-lo no dia do santo, repetindo o mantra: “chêro-cherôso pra tirar o catingoso”, “chêro-cherôso pra tirar o catingoso”….

Enquanto o banho gelado, gelado como água de igarapé, que ficou no sereno para receber as energias da noite ou bênçãos da lua, como preferem os românticos, vai escorrendo pelo corpo e as folhinhas que escaparam do coador se grudam à pele, o perfume da floresta entranha na pele. Os cabelos ganham um cheiro diferente, incapaz de ser obtido pelo uso de qualquer shampoo, melhor que seja. Nada se compara ao perfume das terras amazônicas, dos alagados, das beiras de rio, do fundo das matas.

O caboclo sabe exatamente o que puxa do solo. Nada que passa por suas mãos provoca coceira ou alergia. O mesmo não posso dizer dos banhos produzidos por curiosos ou espertalhões, que emprenham o lote com tudo que é besteira. Se calhar até urtiga vem. Os desavisados engolem qualquer porcaria, do mesmo jeito como votam em qualquer idiota, olhando apenas para a superficialidade de suas propostas. Aí dá no que deu.

Cada pessoa deve ter seu erveiro de confiança. Uns compram com a Beth Cheirosinha, como eu, freguês que sou desde o tempo de sua mãe, dona Cheirosa. Outros preferem a Coló. Há quem seja fiel à banca do Tião, que não faz marketing de espécie alguma. Quem se trata em terreiro muitas vezes tem de levar a receita apenas para ele. Existem entidades que só confiam no Tião e não levam comissão por isso. É respeito mesmo.

Devem existir outros e bons vendedores de ervas, que não empurram mato sem odor no banho, mas conheço apenas esses. Hoje, nem banho verdadeiro, nem “falsifiqueishon”, nem banho do Paraguai vou ter chance de tomar. Será um São João a seco. Mas deixa estar que já tenho a receita das ervas indicadas para 2020. Assim que for possível, irei comprá-las e, nem que seja em dezembro, vou preparar meu banho de São João fora de época.

O melhor banho que já tomei, feito com produtos da terra, foi preparado por uma amiga querida, que mantém linha direita com Preto Velho. Na verdade, são as Pretas Velhas, as “vovós” dos terreiros, as responsáveis pelas fórmulas anuais. As folhas precisam ser maceradas num alguidar, juntamente com as cascas e batatas raladas, misturadas com raízes. O preparado pode ser fervido em lata ou deixado na grande gamela de barro para pegar força, liberar energias, atrair bons fluídos sob a noite. No dia seguinte, esquenta ao sol e, no São João, limpa do fiel de tudo que não presta, para depois atrair somente coisa boa.

Se me perguntarem o tamanho da minha crença nisso tudo, respondo que é ilimitada. A ajuda do banho de cheiro, também chamado de banho da felicidade, jamais me faltou. Assim como a cronista Eneida, cavo minha felicidade com as próprias mãos, mas prefiro que elas estejam encharcadas do banho de cheiro do Pará, esta terra que tanto amo.

Se a alguém interessar a receita que uso regularmente, quando me falta a específica de cada São João, apresento os ingredientes: manjerona, catinga de mulata, priprioca, abre caminho, dinheiro em penca, pau rosa, vinde-cá, patchouli, oriza e canela. Amassa-se bem a mataria, depois rala-se a batata e coloca-se o pau rosa. Finalmente entra a canela. Deita-se a essência que for do gosto de cada um. Pode ser sândalo, patchouli, alfazema, o que quiser. Só não presta perfume francês, porque isso significa acabar a guerra com baladeira. Ou ferve para tomar no mesmo dia, ou deixa no tempo para fortificar.

Com o banho pronto, há quem o coe ou apenas separe a água perfumada. Com uma cuia, toma-se o banho da felicidade, pensando nos efeitos benéficos que ele contém. Deve-se deixar o corpo molhado pelo maior tempo possível. Secar-se com toalha, nem pensar. Isso é tarefa para o vento. Quando for possível, coloca-se a máscara e corre-se para vida.

Nada garante que banho de cheiro proteja do corona vírus, mas duvido que um bicho tão amaldiçoado tenha coragem de chegar perto de pessoas tão amazonicamente perfumadas.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Aglaia — A plateia do trapézio, 1982.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Perdi meu comentário.
    Aquele que vem no lance da emoção.
    Fiquei contente por você falar de algo que vivi e hoje em dia nem ouso comentar.
    Em tempos idos, já amarrei uma fita encarnada em meus cabelos.
    O cheiro de mato e flor de uma folha macerada de oriza me envolve. Um cheiro bom que não se deixa aprisionar.

    Curtir

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