Diante de Deus, não há mais filho, ou menos filho. Todos são filhos.
Diário de um desespero – ou quase – LXXVII
João Carlos Pereira
Desde que começou o isolamento, para mim, beirando o terceiro mês, não vou à missa. Presencialmente falando, é claro, porque todos os domingos (e até em outros dias da semana), não é programa obrigatório, mas compromisso de fé me colocar diante da televisão, com a diferença que fico em casa, totalmente à vontade, meu Deus e eu, vivendo (não assistindo a um programa) o santo sacrifício do altar. Agora que já está liberada a presença limitada de pessoas, não posso ir.
No primeiro domingo com missa em casa, começo da construção do que foi chamado de igreja doméstica, me assustei comigo mesmo sentado, sem camisa, vendo a cerimônia. A princípio, cheguei a ficar um pouco incomodado com a minha “falta de respeito”, pudor mundano, bobagens que ainda carrego na alma e das quais, aos poucos, me liberto, como diria Mario Faustino, “sem saudade, pena ou ira”. A gente se prepara é para receber visita, gente estranha, de cerimônia. E por mais íntimo que seja um amigo, convém sempre colocar uma camisa. Mas eu estava acolhendo Jesus, em casa, que dispensa todo protocolo.
O Jesus histórico, o que está nos evangelhos como Deus humanizado, não ligava a mínima para convenções sociais. Pelo contrário. Se Ele chegasse aqui em casa e eu estivesse de pijama, sem camisa, será que ia achar feio, me criticar? Será que ia sair daqui e comentar bem ali?: “Eu fui à casa do João e ele me recebeu de pijama!” Quem acha que Jesus não tem mais o que fazer, ou teceria esse comentário ridículo, é porque não O conhece.
Sempre penso, quando começo, eu mesmo, a me punir e a me acusar, que Jesus não é sub-gerente do departamento de moralidade do setor de acesso ao paraíso. O trabalho dEle não é carimbar passaporte, depois de olhar a ficha preparada por um inexistente gabinete de fiscalização da vida dos outros, coordenado por um conservador de dupla face, bajulador do Chefe, ou por um moralista empedernido destacado para o lugar. No inferno talvez haja essa gente. Lá em cima, duvido.
A religião católica que eu pratico e amo não pensa assim. O catolicismo que vivo, centrado na doutrina cristã, é essencialmente libertador e totalmente aceitação, acolhimento, tolerância e amor. Foi assim que aprendi com padre Luciano Ciman, com D. Vicente, com D. Ornai, com os padres Ronaldo, Luiz Carlos, Jaílson, Beltrão, monsenhor Marcelino e, mais recentemente, com D. Alberto. O papa Francisco veio confirmar tudo que eles me ensinaram. E Francisco, ninguém esqueça, é o vigário de Cristo na Terra. Foi eleito por inspiração do Espírito Santo para comandar a santa Igreja, não para ser o superior de uma ordem presa aos temores da Idade Média.
Há alguma coisa errada no fato de uma senhorinha se arrumar toda para ver a missa na televisão? Claro que não. É bonito. É respeitoso. Mas não considero desrespeitoso receber meu Criador em casa, na minha cozinha, à vontade, verdadeiro. Diante dEle, caríssimos, ninguém se iluda, estamos todos na frente de um raio-X da alma.
Nosso Senhor não nos olha pelo lado de fora, por nossa aparência dissimulada ou constrangida. Não são apenas um batom, um cabelo arrumado, uma roupinha mais ajeitada, um paletó e gravata e a Bíblia, ou o “Deus Conosco”, dos católicos, para ninguém pensar que estou me referindo aos evangélicos, debaixo do sovaco, que levarão alguém para o céu. Nada contra que assim procede. Mas eu vou à missa com a roupa mais simples que tenho, jeans, T-shirt e sapato de enfiar, que escondo debaixo do banco e me coloco descalço para melhor sentir a terra que me sustenta. Só me calço para comungar.
Já houve um tempo, não vou mentir, em que eu achava o fim da picada ver alguém de bermuda na Igreja. Era o tempo, vamos dizer, da idiotice. Claro que há vestimentas certas para os lugares adequados, mas a Igreja é a casa do Pai, não do inspetor-corregedor. Um dia, uma pessoa me interpelou, perguntando se eu não considerava desrespeito um homem comungar, usando bermuda. Ele se referia a um senhor que aparentava poucas condições financeiras, que acabava de sair da missa. Olhei para ele e respondi com franqueza, fazendo nova pergunta: será que ele tem outra roupa?
Sei que não se vai à praia de paletó, assim como traje de praia não é o de missa. Há que se ter bom senso e aquilo que Boileau chamava de justa medida das coisas. Uma vez, após a celebração dominical, fui abraçar o celebrante e uma senhora se colocou entre mim e ele para reclamar do cumprimento da saia de uma das ministras que distribuía a Eucaristia. A mulher vinha com os diabos. “O senhor viu? Aquelas pernas de fora!!!” O padre olhou para ela e respondeu, serenamente: “vi, minha filha. É uma pessoa prestativa, nos ajuda bastante aqui e tem pernas muito bonitas, realmente”. Senti pena da criatura, que procurou, desesperada, um buraco para se enfiar e não achou.
Penso que Deus não sente vergonha de ver, o que não teve pudor de criar. Tampouco se constrange com o jeito de cada um, porque somos todos, queiram os conservadores ou liberais, seus filhos. Hitler não era filho do diabo, embora fosse seu aliado. Mas era tão irmão de madre Tereza como qualquer um de nós. Até que se prove o contrário, Deus não é comunista, nem devasso, nem nada disso. Deus é pai. Ou Mãe, como disse o papa João Paulo I. Quem achar que Ele está errado, que vá em busca de outro deus, com minúscula, o subalterno desses milagreiros de plantão, que “determinam” o que Deus deve fazer, mas ainda não conseguiram achar a cura para a covid-19. O vírus não tem respeito por eles. Nem eu.
Agora que posso ir à missa, tenho recomendação médica para não sair de casa. Sou do grupo de risco, em duas categorias: a idade e a cardiopatia. Mas nada impede que visite minha igreja em horas soturnas e, se possível, receba Jesus eucarístico. Também preciso me confessar, porque não inventei um catolicismo só para mim e católicos necessitam do sacramento da reconciliação. Para tudo, porém, haverá tempo e sempre contarei com um padre amigo para conversar. Confissão não é câmara de tortura, nem salão das moralidades. É um espaço para a alma fatigada.
Há muitos, muitos anos, conheci um jesuíta que ainda não havia atingido o auge da surdez, mas estava bem próximo do silêncio absoluto. Quando entrava no confessionário, esforçava-se para escutar os pecados, até que um dia isso ficou impossível. Mesmo assim, deu, até o fim da vida, em nome de Cristo, a absolvição das culpas. Uma vez, conversando com outro sacerdote seu amigo, ouvi dele uma explicação encantadora, que jogou mais luzes sobre o fascínio da reconciliação: “era nosso melhor confessor. A pessoa falava diretamente com Deus e recebia a absolvição”.
Nunca vou me esquecer de uma breve conversa com D. Vicente, na parte final da missa de corpo presente da muito amada professora Graça Landeira. Antes de dar a bênção, sussurrei ao Arcebispo que ela não havia recebido os últimos sacramentos, porque em Salinas, onde morreu, não havia como. Com aquele olhar bondoso de pai e, ao mesmo tempo, pleno de santidade, diante da urna fechada, me tranquilizou: “não se preocupe. Uma pessoa boa, que levou uma vida santa, de muita caridade, como ela, não precisa. A esta hora, já está no céu”.

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Pompeo Batoni — O retorno do filho pródigo, 1773. Museu de História da Arte, Viena.
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