Perto de Marte e longe de São Petersburgo. Não vale a pena.

Diário de um desespero – ou quase – LXX

João Carlos Pereira

Assim que li a notícia de que a Nasa estava recrutando voluntários para uma temporada preparatória a uma viagem a Marte, quase pirei. Oito meses de isolamento para valer, sem celular, sem ninguém buzinando no meu ouvido, para dizer o que devo fazer ou o que não devo, oito meses sem conta, cartão de crédito, aperreio, carro dando bronca, computador pifando, internet bereré, corona vírus, nada. Oito meses em plena paz. Melhor que isso, só no lugar onde o professor Paulo Maranhão resolveu que se colocasse, sobre o mármore da própria sepultura, o epitáfio que ele mesmo escreveu: “aqui, sim, tenho paz”.

À medida que lia a notícia, minhas ilusões iam murchando, tal como gelo em contato com água quente, ou o vírus da covide-19, quando atingido pelo álcool 70. Estou fora da aventura em todos os critérios.

O primeiro é a idade. Só pode gente entre 30 e 50 anos. O segundo: boa saúde. Poderia argumentar que acabei de tomar vacina contra tuberculoso e gripe. Aí a médica mandaria tirar a camisa e a primeira coisa que veria era o zíper no meio do meio peito. Quarto: o cara tem que ser bom em matemática, tecnologia de engenharia e ciências. Finalmente: deve ser fluente em inglês e em russo. Ainda ia tentar enrolar, perguntando se não poderia trocar russo por francês. Conheceis alguém que preencha todos esses requisitos? Indicai. Para mim, só na próxima encarnação, se isso existir, é claro.

O treino acontecerá em terra mesmo, num lugar perto de Moscou. Me parece que o edital saiu com cartas marcadas. O exercício será para quem sabe russo, porque inglês muita gente conhece. O objetivo é ver se o futuro astronauta resistirá a oito meses de confinamento, num Big Brother três vezes pior que o da TV e muito mais complicado que o nosso, de agora.

Juro por Deus que até já me habituei a fica em casa e que a fase do desespero passou. Vivo, com tranqüilidade, dentro de mim e comigo. Não reclamo de nada, a não ser de tudo que me chateie. Aos 61 anos, sou considerado incapaz pelas filhas, que agem em nome do amor extremado e do cuidado. Ainda não cheguei à senilidade e já passei há muito da loucura dos anos dourados. Atravessei a idade da razão e aportei – graças ao bom Deus – na fase do “por favor me deixem em paz”. Isso vale para dentro e para fora de casa.

Antes mesmo do isolamento, eu já fazia um teste, uma espécie de treino. Não é de agora que reduzi as saídas e quase só ia para as sacadas de amigos. Passei a valorizar meus espaços e a cozinha doméstica. Minha vida social encolheu e cada vez ficará menor. O isolamento me ensinou tanta coisa, que só peço a Deus para esticar meus anos, a fim de que possa, eu mesmo, me testar.

Quanto ao que disse no começo, solicito o favor de que quase tudo seja desconsiderado. Não ia suportar oito meses longe de casa e dos amigos, ainda mais trancado, perto de Moscou, sem poder voltar a minha querida São Petersburgo.

Claro que celular e computador fariam falta e as pessoas mais ainda. Mas uma boa peneirada não faz mal a ninguém. Pelo contrário.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Claudio Tozzi — A subida do foguete, 1969.

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