A reinvenção diária da filosofia e novas perguntas para a fé

Diário de um desespero – ou quase – XCII

João Carlos Pereira

Acho que, em vez de Letras, eu deveria ter me acertado com a Filosofia. Mas se ir para Letras foi uma tourada, porque todo mundo achava que ia morrer de fome, assim como imaginavam sucederia com minha irmã, que cursou História, se tornou referência internacional em Arqueologia e, até ontem, ainda não havia morrido de fome, pelo contrário, se aperta na dieta, troca de carro regularmente e adia viagens internacionais de lazer, tamanhos são seus compromissos profissionais. Dois destinos bem diferentes do que preconizaram os que só viam como profissão Direito, Engenharia e Medicina.

Depois da pandemia, todo mundo foi nivelado por baixo. Currículo Lattes e saldo bancário não servem para nada. O coroa vírus 19 igualou o povo, mostrando ao mundo que, no fim das contas, somos feitos do mesmo barro. Essa pesada consciência da nossa finitude e de tantas incompletudes, consciência absoluta da poesia de Manoel de Barros, não me transformou em mais um reinventor da filosofia, aquele que, para viver, precisa encontrar respostas para três perguntinhas básicas: quem eu sou, de onde eu vim e para aonde vou. Só a primeira consome toda linha da existência de uma criatura.

Como muito penei (e se disser que não peno mais estarei mentindo) para encontrar a resposta para a primeira e sofro sem poder ligar um GPS para, pelo menos, achar uma pista da terceira, o que muito me ajudaria elucidar a segunda, acho que posso virar a página do questionário e ir para um nível igualmente desconfortável do saber de si mesmo, prolongamento avançado da primeira básica questão.

Ajoelhado diante da imagem do Crucificado, indago à minha alma: no que é mesmo que eu acredito? No que foi que me fizeram acreditar? O que há de verdade para além da morte? E o que não há, esse vazio aterrorizante que me paralisa a oração?

No que eu acredito exatamente não sei dizer. Confio na misericórdia, que também é amor, de Deus, no mistério da Santíssima Trindade, na ação materna de Nossa Senhora e nos santos criados pela Igreja católica. Deus às vezes é tão fácil e, em outros momentos, uma rocha silenciosa. Talvez eu esteja falando de meus ouvidos e não do Criador. Crer no escuro gelado da incerteza é a materialização da fé. Talvez a minha seja microscópica ainda, porque não sou capaz de dizer a uma montanha que mude de lugar e ela obedeça ao meu comando. Mas eu sei a quem peço e nunca duvidei de que sou atendido. Às vezes fico aborrecido comigo mesmo, porque peço um sinal, que vem a ser a luz amarela da fé. O pior é que o sinal nunca me faltou.

No que me fizeram acreditar é a pergunta mais fácil de todas. Me fizeram acreditar num monte de bobagens alimentadas pelo medo e pelo servilismo de sacristia. Me ensinaram a pior versão do catolicismo, o que, pelo visto, é a que se espalha por aí. Grandes levas de católicos, verdadeiras diásporas, migram das igrejas para os templos (neo) pentecostais, atraídas por promessas que não podem ser cumpridas. Parece que o ser humano gosta de viver iludido. A “filosofia” da prosperidade enche os olhos e esvazia os bolsos dos dizimistas fanatizados. Há alguma coisa de muito errada nesse movimento. Ou nossa Igreja não acolhe como deveria as ovelhas que o senhor lhes confiou, ou a ignorância preside a passagem.

Há cada vez menos padres e as Igrejas, na Europa, estão fechando por falta de fieis. Muitas viram residências, boates ou casas de espetáculo. Fátima, Lourdes e outros santuários europeus ainda são ilhas de fé num continente que se mostra indiferente à religião. Li que a China será o maior pólo cristão do mundo, o que seria ótimo. Mas como, me indago, se o processo de perseguição aos que crêem no Cristo é crescente?

Não se observa nenhum tráfego relevante de católicos indo ao encontro do Anglicanismo, do Presbiterianismo, do Luteranismo, de catolicismos não-romanos. Muitos frequentam igreja, centros espíritas ou terreiros, sem firmeza para assumir uma posição, seja ela qual for e todas coerentes com a mensagem de Jesus. Dificílimo ver um cristão tornar-se judeu. Mas os outros caminhos de saída estão superlotados. É o povo indo ao encontro do espetaculoso e não da Verdade.

Religião assentada sobre o medo do castigo divino, sobre um eterno “não pode”, “é feio”, “é errado” não deita raiz no coração de ninguém. A Igreja precisa acolher e recolher os que vivem no “não pode” (casar pela segunda vez; unir-se afetivamente a um igual; aceitar o outro como ele é e mais uma lista de proibições). Deve abraçar os diferentes e fazer a distinção clara entre o não pode “roubar”, “matar”, “fazer fake news, versão moderna de não levantar falso testemunho, ser indiferente à dor e ao sofrimento dos mais pobres. Isso não pode de jeito nenhum. Também não pode fechar os olhos à injustiça, ao desamor, à prepotência e ao carreirismo eclesial. A Igreja de Cristo, cujo vigário na terra se chama Francisco, escolhido para guiar abarca de Pedro sob influência do Espírito Santo, precisa, como ele vem ensinando, ter pastores que conheçam o cheiro das ovelhas e ajam como se a instituição fosse um hospital de campanha, o que vai ao encontro dos feridos e não espera que cheguem.

Se a Igreja que nos apresentassem fosse essa, muito dificilmente aconteceria a sangria de fieis, porque as pessoas passariam a crer num Deus que é pai e não inspetor de alunos danados e rebeldes. A Igreja católica, que segue a tradição dos apóstolos, deve ser pobre como eles foram e caminhar com o povo um pouco à frente, para guiá-lo; ao seu lado, para confortá-lo, animá-lo e ajudá-lo nas fadigas de todo dia; um pouco atrás, eventualmente, para defendê-lo. Essa é a Igreja que eu amo, que eu conheço e cujos ensinamentos professo.

Sobre o que o que há e o que não há, vou me valer de uma frase do professor Édson Franco. Mas é melhor deixar essa conversa para amanhã, porque a de hoje vai render pano para muita manga, o que, atualizando para o dia de hoje, muito zap e muito email para responder.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Arthur Luiz Piza — Composição em Vermelho e Preto, 1981. Museu de Arte de São Paulo.

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