Estátuas irão recontar a História reavaliada

Diário de um desespero – ou quase – LXXXVI

João Carlos Pereira

Uma vez, desejaram homenagear Mario Quintana com uma placa de bronze, ou com uma estátua, não lembro direito. Na hora da cerimônia, ele foi chamado a dizer umas palavrinhas. Com aquela carinha de anjo e seu jeito gaúcho de mangar das pessoas, das situações e até das honrarias que lhes eram oferecidas, fez um discurso breve, mas inesquecível. Agradeceu a distinção, mas disse que tinha medo dela, “porque um erro gravado no bronze é para sempre”.

Com a temporada de caça às estátuas aberta no mundo todo, a História vai passar por uma revisão meio capenga e as criaturas de bronze têm tudo para mudar de lado. Os vencidos entrarão em cena, no lugar dos vencedores. Os oprimidos serão lembrados, em vez dos opressores. Os heróis que conseguiram notoriedade às custas do sangue e da dor dos povos cairão na vala do esquecimento.

Não entendo bem esse procedimento e, por isso, questiono sua validade. Cada tempo construiu seus mitos e preparou estátuas para eles. Muito da História está registrada em mármore, bronze ou cimento. O nada que se discute sobre elas parece querer compensação na base do grito. Se demolir a estátua de um bandeirante carniceiro apagasse o passado e impedisse ações semelhantes, com o mesmo ou novo nome, de acontecer, seria ótimo. Mas isso pertence ao mundo da ficção.

Na União Soviética comunista, tudo que pudesse lembrar a dinastia Romanoff foi tirado de cena. Não sei que tal uma bela estátua equestre de Pedro, o grande, escapou da “limpeza”. A casa de Pedro também foi poupada e hoje é uma fonte de renda para o turismo local. Décadas depois, quando o regime vermelho foi deposto, as estátuas de Lênin e Stalin acabaram “na chom”. Até o nome original da cidade de Pedro, Petrogrado, a linda São Petersburgo, foi restaurado. Leningrado sumiu do mapa com desprezo e sem remorso.

Cristóvão Colombo tem padecido em solo americano e argentino, onde sua memória é humilhada e o povo desconta nas estátuas a opressão do passado. Por que, no lugar de banir da vista das pessoas uma figura que, hoje, é considerada polêmica e até mesmo cruel, não se submete ao procedimento de uma releitura contemporânea, à luz de modernos conceitos de historiografia e de conceitos despidos de apego ao poder? Uma espécie de segunda opinião.

Não toleraria passar por uma praça de Belém, por exemplo, e ver um monumento erguido a um feitor de escravos, por exemplo, ou a qualquer outro criminoso dessa categoria. Já pensou um busto de Hitler num logradouro alemão? É inconcebível. Mas nem por isso seu nome deverá ser riscado das páginas de história e sua foto borrada para sempre. Os campos de concentração, na Polônia, existem para lembrar a barbárie.

 Derrubar por derrubar não soluciona. Talvez trocar para um lugar de menor visibilidade, sempre acompanhada de uma placa explicativa, contendo o contexto em que foi feita e dizendo, na verdade, quem foi o cara-pálida.

Na história do mundo, alguns “perdedores” foram justiçados. No Brasil, Tiradentes , que, aparentemente, perdeu, ganhou o respeito da pátria e hoje estaria em um panteão nacional. Silvério dos Reis, o traidor, “vendedor”, está totalmente esquecido, seu nome virou motivo de desonra e sinônimo de Judas. O maior de todos os exemplos, Jesus Cristo, “perdeu” feio para o império romano. Seu julgamento faz-de-conta ajudou a dividir a história dos homens entre antes dEle e depois dEle. Sua imagem de homem pregado na cruz é a maior referência de justiça e de amor.

Não sei se a estátua de São João Paulo II, colocada numa das entradas da Faculdade de Coimbra, envergonha algum aluno ou professor que não seja católico. O mesmo vale para a homenagem à santa que emprestou o nome à cidade de Santa Isabel, no Pará. O monumento é motivo de constrangimento? Também nunca soube que alguém desejasse destruir a estátua de padre Cícero por conta de suas convicções políticas. Se dependesse da vontade do cardeal Ratzinger, em cujas mãos estava o processo do religioso cearense, ele já estaria reabilitado perante a Igreja Católica. Acontece que os cardeais o chamaram para o comando do barco de Pedro e as papeladas do “padim” parecem ter parado outra vez.

Há algumas estátuas que enchem de orgulho toda a gente. A do Cristo redentor deve ser um caso de unanimidade. Também no Rio, a estátua de Drummond, em Copacabana, é disputadíssima inclusive para um afago. Em Belém, a do poeta Ruy Barata, no Parque da Residência, virou ponto obrigatório para quem quer tirar uma foto de alto astral. Até em formato de bronze, Ruy é adorado. Mesmo por aqueles que não tiveram a felicidade de conhecê-lo.

Meu único medo, nessa história toda, é que Brasil do atraso resolva povoar o país com estátuas, bustos e tudo mais que lembre os “mitos” do presente. Duvido que qualquer reavaliação histórica dos que desejam manter a nação no retrocesso possa torná-los dignos de qualquer bibelozinho.

Erros em bronze serão para sempre. Mas é melhor nem gastar o metal com gente que não presta. Ou, traduzindo para um português bem claro: não gastar vela com defunto ruim.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Siron Franco — A Rainha, 1975

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