Flamingos em Veneza, urubus no Museu e garças por todo canto

Diário de um desespero – ou quase – LIII

João Carlos Pereira

Tinha para mim que a imagem dos flamingos, que foram confundidos com cisnes cor-de-rosa, entrando pela baía de São Marcos e chegando à altura da estação de trem de Veneza, era fake. A montagem foi criada pela fotógrafa e artista visual russa Kristina Makeeva e não passou de um sonho, de um desejo de ver a cidade mais bonita do que ela é, o que beira o impossível.

Se alguém quiser decorar uma igreja barroca com flores, perderá tempo e gastará dinheiro, porque esse tipo de templo dispensa qualquer tipo de enfeite além dos que, por natureza, possui. Com Veneza é igualzinho. Nada lhe acrescenta um centímetro de formosura. É diferente do Louvre, onde a pirâmide caiu como uma luva e não comprometeu – ao contrário, aumentou – o encanto do lugar.

Foi neste cenário quase de sonho que Makeeva implantou os flamingos e fez o mundo acreditar que as aves haviam sido atraídas pela solidão da praça, indo em direção à feira que fica do lado oposto à estação de Santa Luccia, onde há o camarão que eles adoram e que lhes dá a pigmentação. Mas nunca houve flamingo por ali e certas realidades só cabem mesmo em sonhos, ou, agora, nos espaços virtuais.

Vi imagens dos canais venezianos limpinhos e fiquei morrendo de saudade. Veneza, depois de Paris e de Lisboa, é uma das poucas cidades no mundo que me arranca suspiros. Quando vou lá, gosto de me perder pelas ruas estreitinhas, subir e descer ponte, ir ao supermercado e reencontrar um artesão que faz imagens em argila. Veneza é uma terra dos meus encantos, ótima para não se fazer nada, ficar com os pés mergulhados naquela água geladíssima, olhando para a beleza, não pensando em coisa nenhuma. Uma vez, por causa dessa leseira, esqueci que o piso estava lodoso e peguei uma queda horrível. Por graça divina não caí na baía. Preciso dizer que estava em frente à igreja de São Jorge?

Não gosto de acreditar, mas cada vez me convenço mais, de que o tempo vai tirando da gente a capacidade de sonhar. O sonho é uma espécie de seiva, que vai irrigando a juventude. Quando acaba, a fonte produz cada vez menos, até secar. Pessimismo? Talvez. Preciso pensar mais na força de Roberto Marinho, que começou a construir a TV Globo quando já havia passado dos 60. Não é exatamente que eu esteja acomodado, porque ando cheio de planos, mas planos são uma coisa, sonhos são outras. Planos possuem raízes fincadas na terra. Sonhos vivem pendurados nas nuvens. Morar em Paris foi sonho, hoje reduzido apenas a viver alguma temporada por lá.

Às vezes, a irrealidade, como os flamingos, em bando, nadando pelo grande canal, faz a gente ser um pouco mais feliz. Não sei se sonhar faz bem para a alma, ou se ela precisa disso para se manter viva, inflada, como se fosse o balão interior que dá leveza ao corpo. Tive tantos sonhos nesta vida e acho que consegui realizar a maioria, portanto, fazendo as contas, o balcão de reclamações pelo que não deu certo deve permanecer fechado.

Meu sonho mais antigo e mais consistente, até hoje, era (e ainda é) ser padre. Tenho certeza de que não vai rolar, porque já dobrei a curva dos 60 e, com certeza, ainda não reúno condições necessárias para exercer o ministério sacerdotal. Deixou de ser meu projeto, mas virou um sonho largo ver a Santa Igreja de Cristo, a qual amo e sirvo, atualizada com nosso tempo, aberta ao sofrimento do rebanho, com pastores esclarecidos, livres de amarras de qualquer natureza, casados ou solteiros, isso tanto faz, mas íntegros, dedicando-se ao povo que caminha muito sozinho pelo mundo. Uma igreja desprovida de preconceitos, pobre, para os pobres, com Francisco II fazendo o que seu antecessor, o querido papa Francisco, não pode. Aos sucessores caberá alargar estradas para que cheguem mais Franciscos a fim de realizar o que São João XXIII chamava de “aggiornamento”, ou seja, alinhá-la ao tempo presente.

Quando digo alinhar, não significa, de forma alguma, submeter-se aos modismos, mas entender, aceitar, acolher e dar espaço ao homem que vive no século XXI, com suas angústias e problemas, e não a um hipotético habitante de um passado obscuro e cheio de limitações morais absurdas. A igreja é Cristo e tenho convicção de que Ele não parou no tempo. Esta é a minha igreja, já vivida por muitos e sábios pastores, que, infelizmente, nem todos conseguem ouvir ou sequer conhecem. Isso não é projeto, porque não viverei para tanto, mas é um sonho real e plausível.

Enquanto sonho com essa realidade, vejo, da janela, que os urubus estão deixando, aos poucos, a copa da árvore mais alta do Museu. Eles ainda estão lá porque são os bichos mais burros e feios do universo. Uma vez escrevi isso e uma pessoa que me xingou, achando que eu não gosto de urubus porque são pretos. Não gosto porque não gosto, tivessem eles as penas azuis, amarelas, verdes, brancas, de qualquer cor. Urubu anda de um jeito horroroso, de pernas abertas, parece que vivem assados, têm um jeito feio de olhar, um pescoço enrugado e o péssimo hábito de comer carniça. Como a onça do Museu morreu e não há mais animais que se alimentem de carne, cujo cheiro os atraía, já podem pegar aviso prévio e se mandar, deixando o lugar para as garças, antigas e dignas proprietárias. Urubus charmosos só os da peça Verde-Ver-o-Peso.

Como são muito lerdos, ainda acreditam que haverá carne para eles, mas a boca, que jamais existiu, era tudo ilusão, sonho, devaneio de uma urubuzada horrorosa, acabou. Ainda moram ali porque não entendem que não há mais nada para eles.

Há alguns anos, o Museu possuía um dos mais lindos ninhais de garças da capital. Cheguei a contar mais de 50. Mas os urubus foram chegando e as espantaram. Aos poucos, não restou um ninho, porque os posseiros dominaram a área e as mandaram embora. Se alguém achar que o problema com os urubus é apenas meu, perguntem aos administradores do parque a razão de, duas vezes por dia, soltarem rojões na direção da árvore da qual se apossaram, a fim de, inutilmente, espantá-los. Eles dão uma volta e, depois, retornam. Agora, devagar, parece que vão embora. E já vão tarde.

No desespero, visitam sacadas dos prédios vizinhos em busca de espaço e até colocam ovos! Em casa, como é tudo telado, não se criam. Mas, uma vez, alguém esqueceu um pratinho de coxas de frango fora da geladeira, numa noite de sexta-feira. Ninguém reparou. Na manhã de domingo, percebi um barulho na janela da cozinha. Era um urubu, que sentiu longe o cheiro de carne estragada e, se debatendo, queria entrar. Por sorte há uma grade que não conseguiu ultrapassar.

Enquanto as garças não voltam, olho, com descarada inveja, as imagens de uma garça visitando o jardim de minha amiga Eulália. Ela reside na rota das garças, entre o Mangal e a praça de Batista Campos. De manhã, topou com a cena inusitada: uma garça caminhava suavemente pelo gramado e chegou à beira da piscina. Garça é um bicho que, como todos sabem, gosta de água. Há muitas, emprestando beleza aos canais da cidade. Atrás da Unama, debaixo de uma ponte, várias delas se reúnem para buscar peixinhos, indiferentes à sujeira.

Pois eis que, do nada, fazendo um percurso novo ou um pouco perdida, gostou da casa da Eulália (e quem não gosta?) e parou. Rodou, rodou, rodou até encontrar o espelho d´água, tratado com cloro e sem nenhum peixinho. É possível que a garça, quem sabe a dona Alba, velha amiga do historiador Sebastião Godinho, tenha tido uma crise de Édipo e parado apenas para contemplar a própria beleza.

Garças são o xodó desta cidade. Uma vez, há alguns anos, algum desalmado deu uma pedrada numa das muitas que frequentam os laguinhos da Praça Batista Campos e a pobrezinha não resistiu à truculência. Amigos da Praça se reuniram para fazer o velório, com direito caixão e tudo, no coreto central. Se fosse um urubu, não mereceria choro, nem vela, porque duvido que haja alguém que sinta a mínima ternura por essa ave.

A conversa nem era sobre urubus e garças, mas a respeito dos flamingos que “invadiram” Veneza. Assim como eles entraram por uma porta inexistente, as garças e urubus, meus antigos e atuais vizinhos, entram por uma janela entreaberta desta crônica e desenham uma nova história.

Na vida real, garças e urubus convivem bem, na área do Ver-o-Peso, onde um urubu malandro namora a garça namoradeira e a chama de minha branca. A fofíssima Dona Onete viu esse chamego e fez uma música, que virou sucesso, exaltando a diversidade do meio do pitiú, o que prova que preconceitos não resistem ao amor.

Entre uma garça e um urubu, preferiria ter, em meu inexistente jardim, uma garça e uma coruja, das aves a que mais admiro.

Quem quiser um urubu, que se arrume o seu. Mas não me chame para ver.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Kristina Makeeva — Art 2020 ▪️ «when people stay at home – city is filled with other residents» [Instagram].

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