Cada um acredita no que quiser. Mas tudo tem limite, meu Deus!
Diário de um desespero – ou quase – LI
João Carlos Pereira
Domingo não é dia de arrumar encrenca, nem de levantar polêmica. Aliás, dia nenhum deveria ser, sobretudo nesses tempos em que a convivência acaba gerando desgastes inúteis e discussões fora de propósito. Mas é impossível passar batido e deixar de lado, fazer vista grossa, para uma promessa que viralizou (essa palavra deveria ser proibida, pelo menos agora, porque ela lembra o maldito corona) e, tenho para mim, fez mais gente rir do que levá-la a sério.
Seguindo a linha do teatro do absurdo, ou do circo dos horrores, que estamos vivendo, cujos roteiros, prontos e acabados, cenas completas, diálogos irretocáveis, imagens que dispensam legendas são despachados a todo momento, de Brasília, um pregador, que se anuncia como apóstolo do Senhor, realiza milagres a torto e a direito, mais até que São Pedro e o próprio Jesus Cristo fizeram (mas ainda não salvou um de morrer de covid-19) e é doido por dinheiro (assim como Judas também era) acaba de colocar no mercado uma semente salvação-da-lavoura. O preço é meio salgado, aliás, bastante: um salário mínimo. Mas deve valer. Quando ela germinar, reproduzirá, não sei se nas folhas, no caule ou nos frutos, porque desconheço que tipo de semente seja, a frase gravada na matriz.
Menino, eu fiquei transtornado com isso. Só não adquiri, porque não tenho mil reais dando sopa. Já vi árvore com a casca marcada por canivete, com inscrições de amor. Pé de sobreiro, a árvore da cortiça, com territórios demarcados no tronco. Orquídeas com cartõezinhos pendurados, mas semente que germina, cresce e traz uma inscrição só pode ser coisa de Deus! Nunca, antes, na história da ciência, houve algo parecido.
Talvez eu não tenha entendi bem o simbólico da mensagem. Ando um pouco atrapalhado das ideias, a idade e as circunstâncias vão embaralhando tudo, mas voltei às imagens e realmente há um pequeno texto que deverá ser reproduzido pela natureza. Quem não puder pagar mil, pode dar a metade, mas não sei se o efeito será o mesmo.
Acabo de me lembrar que meu xará João, um menino sem sobrenome, trocou a vaquinha da família, única coisa de valor a ser vendida no mercado para aliviar a pobreza da casa, por uns míseros grãos de feijão. De volta à casa, o ingênuo João levou uma vastíssima esculhambação e, se as ideias não me confundem outra vez, pegou uma surra bem dada. Quem mandou acreditar na história dos feijões mágicos? O pai arremessou-os pela janela e, no dia seguinte, começou, de verdade, a saga do João, cujo final, cheio de riquezas, coragem e glória todo mundo conhece.
As pessoas têm o direito de acreditar no que e em quem quiser. Eneida, a sempre citada Eneida, dizia que o homem precisa ter fé, nem que seja num jacaré. Fé é uma palavra perigosa, sobretudo nas mãos de alguns letristas e poetas paraenses, que só encontram para ela uma rima: Nazaré. Para esses, o nome Pará só acha identidade sonora com tacacá, assim como açaí com tucupi. Esse tipo de harmonização, digamos assim, é tão comum, tão vulgar, de tal maneira banalizada, que deveria ser proibida por lei estadual. Quem rimasse Nossa Senhora de Nazaré com fé, ou fé com Círio de Nazaré, seria multado. Ninguém aguenta mais tamanha criatividade, tal como a que aproxima amor de dor, e amor de teu calor. Como Eneida sabia das coisas, rimou fé com jacaré, uma ousadia nunca antes cometida, e jamais repetida, nestas terras.
Seguindo a ideia de liberdade que ilumina o caminho dos homens sem amarras, o direito de crer e de não crer é uma bênção. Eu mesmo já atravessei desertos de descrença e, quando voltei não a crer, mas a confiar, porque acreditar é um borrão da confiança, entendi o sentido da fé.

Se alguém me perguntar se acredito em assombração, em saci, em matinta perêra, que, percebo agora, pelo sobrenome, deve ser aparentada de saci pererê e nenhuma ligação com a família Pereira – reparem que há um i para afastar genealogicamente – digo, sem medo de parecer bobo, infantil ou ridículo: claro que acredito! Mas se quiserem saber se acredito em Deus, respondo na hora: não! Não acredito em Deus. Eu confio em Deus, que é muito mais forte, mais amplo, mais profundo e mais seguro. Eu lá vou confiar num saci ou numa matinta? Neles eu acredito, em Deus, confio.
Em mais um domingo sem poder me aproximar da mesa do Senhor e comungar seu Corpo e seu Sangue de modo presencial, porque o isolamento também é Eucarístico, reafirmo minha confiança de que aquele pedacinho de pão, misturado com o vinho fortificado, o chamado vinho de missa, diferente desses vendidos por aí, com rótulo e estrelas, é o Corpo de Cristo. Como disse no começo, cada um acredita – ou confia – no que quiser.
Quando escreveu o poema “Igreja do Arrabalde”, Bruno de Menezes não chegou a cometer uma pequena heresia, mas deixou a esposa, minha saudosa vovó Francisquinha, a professora Francisca Menezes, um tanto aperreada. No final, ele dizia: “seus devotos creem mesmo que a Hóstia é o corpo de Deus”. Ela reclamava; “Bruno, não escreve isso. O que os meninos vão achar…?”
Os versos, que colocavam em questão a verdade acerca da transubstanciação, na qual os católicos creem piamente e se tornou o eixo da nossa fé, não afastou dois de seus filhos da vida religiosa. A mais nova, Marília, entrou para o convento e até hoje é feliz como freira. Geraldo foi monsenhor e exemplo de vocação.
Gozador como ele só, Bruno se apresentava como sogro de Jesus. Se alguém estranhava, explicava: “minha filha é freira, casou-se com Jesus. Se ele é seu marido, logo é meu genro”. Assim como Eneida, nunca, na história do mundo, ninguém teve tamanha ousadia. Nem antes, nem depois dele.
Não debocho de nada que tenha valor ou significado sagrado para as criaturas, mas certas práticas de natureza puramente comercial, na qual multidões apostam sem fazer uma única pergunta, sem apresentar questionamento de qualquer natureza, não podem ser levadas em consideração.
Um dia desses, uma senhora me contou que a conhecida de uma conhecida de uma conhecida dela se dá com uma pessoa, que já nem atendia mais celular, porque do banco ligavam a cada minuto, cobrando a dívida da mulher. Eu já devi a banco e sei que o sistema é implacável. Enquanto a gente não paga, eles não desistem.
Desesperada, a criatura foi atrás de um milagre – desses que Nossa Senhora de Nazaré não opera de jeito nenhum – e o líder da sua igreja mandou que ela passasse um pano ungido na porta da agência onde a dívida não parava de crescer. Pois a mulher foi, de madrugada, lustrou tanto a maçaneta, que a deixou brilhando. No dia seguinte, o gerente da conta ligou, avisando que não apenas havia caído um bom dinheiro, suficiente para limpar seu nome, e, com o que sobrava, poderia ser feita uma operação que lhe daria tranquilidade pelo resto da vida.
A mulher quase morreu e eu, também. Ela, de alegria. Eu, de indignação e de raiva. Por que não me deram um pano desses, antes que eu quitasse o meu débito?
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
Todas as crônicas publicadas no Ignatiana
Imagem: Manabu Mabe — Flores da Alma, 1985.
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