A imensa saudade do Dr. Aurélio do Carmo – parte II

Diário de um desespero – ou quase – XLIII

João Carlos Pereira

Sonhos de planície, vida de montanha do “doutor-menino”

O texto a seguir é a segunda parte da entrevista que fiz com Dr. Aurélio do Carmo, no pátio de sua casa, na avenida Alcindo Cacela, onde sempre era recebido com festa. Já tendo me tomado de intimidades, coisa que, para mim, não é difícil, gritava da porta; “Dr. Aurélio, o senhor recebe qualquer um?” Ele me acolhia com um abraço. Muitas vezes estive lá, no espaço onde nossa amizade cresceu e se ampliou para Mariete, a esposa, anjo tutelar e presença amorosa em sua vida, nos últimos quatorze anos.

Doutor Aurélio morreu sereno, dormindo, em paz com a vida e com sua consciência. Apeado do poder pelo golpe de 64, ficou longe da vida pública por força de uma cassação infundada. Uma vez lhe perguntei se havia sido cassado por corrupção ou por ideologia e ele respondeu, achando graça: “olha, João, nem eu sei. Eles nunca especificaram a razão do meu afastamento”. A Assembleia Legislativa restitui-lhe, simbolicamente, o título de Governador, como forma de reparar um erro que a História não poderia engolir, pura e simplesmente.

Com esta postagem, presto uma doce homenagem ao meu querido amigo e, de forma especial, à igualmente querida Mariete do Carmo. Sei que não gosta que se diga isso, porque é uma criatura especial, boníssima como ele, mas, sem seus cuidados, o Doutor Aurélio, o seu Lilito, não teria chegado, tão bem, aos 98 anos.

Obrigado, Dr. Aurélio. Obrigado, Mariete.


  1. Aurélio do Carmo assumiu o governo do Estado no dia 31 de janeiro de 1961, com a mesma disposição para o diálogo que sempre demonstrou no trato com Magalhães Barata. Auxiliado por Benedicto Monteiro, colonizou, “sem sangue”, o sul do Pará, fez funcionar o Banco do Estado, criado, mas não instalado, por Zacharias de Assumpção, e começou a levar o ensino médio para o interior. Mais teria feito, se o gole de 64 não tivesse atravessado seu caminho.
  2. Aliado de Juscelino Kubitschek, aceitou trabalhar na campanha para reelegê-lo, esperando que fosse criado um ministério da Amazônia. JK perdeu a eleição para Jânio que, não fosse pela intervenção do dr. Aurélio, teria desativado a estrada de ferro de Bragança. O golpe alcançou-o no Rio de Janeiro e Epílogo de Campos levou-o ao encontro do marechal Castelo Branco, a quem conhecia dos tempos em que comandou a 8ª, Região Militar e tinha na conta de um homem cordial. Do marechal-presidente recebeu a garantia de que nada havia contra ele e que deveria voltar para governar o Pará. Certo de que não era alvo do golpe, se impressionou com a memória e com a delicadeza do novo dono do poder. “Ele se lembrou da Lourdes, a minha mulher, na época, e perguntou por ela…”
  3. De volta a Belém, viu que as coisas não seriam fáceis. O general Bandeira Coelho procedeu a uma rigorosa investigação em seu governo, mandou prender alguns secretários e pedia explicações de tudo. “Eles não gostaram porque mandei hastear as bandeiras a meio mastro, em sinal de luto pelo golpe. Tive que ser firme com o General, dizendo que se precisava prender alguém, que esse alguém fosse eu. E mais: avisei que só daria satisfação do meu governo à Assembleia e ao Tribunal de Contas”.
  4. Imaginando que seria preso, arrumou a mala e pediu à esposa que, no caso de ir para a cadeia, não intercedesse por ele junto a ninguém. Cassado no mesmo dia em que seu amigo JK perdeu os direitos políticos, não chegou a ser detido, mas foi humilhado pelos militares, que o cassaram por corrupção e subversão. “O jogo do bicho sempre houve antes e depois de mim. Fizeram uma devassa na Sefa e não acharam nada. Me acusaram de dar títulos falso de terra, mas mostrei que, se tinha a faculdade de dar verdadeiros, por que falsificar?”. Como o tempo é senhor da razão – e da verdade – dr. Aurélio foi anistiado, em 84 e, em abril de 2013, a Assembleia Legislativa restituiu-lhe, simbolicamente, o cargo do qual foi apeado.
  5. Sem direitos políticos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi viver de advocacia e experimentou dias muito difíceis. O homem bonito e galanteador, sobre os quais as mulheres se atiravam, segundo relata, ainda meio convencido, estava só. Em casa havia apenas a esposa e uma filha adotiva. Pelo mundo, cresciam outros cinco filhos (diz a lenda que são mais) naturais, mas todos devidamente reconhecidos. “Na nossa sala havia uma placa onde se lia: aqui mora o melhor marido do mundo. Quando a Lourdes soube desses filhos, quebrou a placa”, diverte-se, explicando que a esposa não podia ser mãe.“
  6. O tempo e a oposição deram ao dr. Aurélio fama de “pegador” e farrista. “Eu sempre fui autêntico. Não mudei meus hábitos, mas meus adversários aumentavam tudo. Se eu fosse o farrista que dizem, como teria chegado aos 92 anos com essa saúde?” Quando passou dos 80, precisou fazer fisioterapia. A senhora que o atendia não pode mais continuar o tratamento e indicou a filha, segundo-sargento da PM, que havia passado para reserva por causa de uma incômoda “Ler”. Sem tempo para novos clientes, prometeu que, quando tivesse uma vaga na agenda, iria vê-lo. O dia chegou e a massoterapeuta, que nunca ouvira falar em Aurélio do Carmo, apaixonou-se. Como no verso de Drummond, na curva dos 80, ele derrapou num amor. De massoterapeuta, Mariete Sousa passou a ser namorada e, em 2008, casaram. Entre eles há uma diferença de 47 anos, que mais os aproximam do que separam. Dedicada e muito amorosa, ela deu ao dr. Aurélio uma nova família. “Nós temos um neta, a Alice, que é a luz dos nossos olhos”.
  7. Vivendo confortavelmente com aposentadoria de governador e de desembargador, vai semanalmente à fazenda onde cria búfalos, frango caipira e começará a produzir queijo e farinha. Em casa, faz exercícios e, daqui a alguns dias, começará a ter aulas de pilates. Convivendo com uma miasteria grave, que há dois anos quase o deixou inválido, consegue levar vida normal. Come de tudo – sobretudo nos almoços de longo curso, com amigos – , raramente consome álcool e, todos os dias, lê o Evangelho Segundo o Espiritismo. “Eu sou espírita por convicção. Confio em Deus, tenho muitos planos pela frente, e,diariamente, procuro reformular-me”.
  8. E o doutor-menino do título? Bem, essa é forma íntima com que é chamado pela esposa. Ela jamais conseguiu tratá-lo de outra maneira, que não fosse “doutor”. Para quebrar a formalidade, a gentil Mariete acrescentou “menino” ao título. Ele acha graça e adora quando ela chega, beija seus lábios, acaricia os cabelos grisalhos e pergunta se o “meu” doutor-menino está bem.
  9. Aos 92 anos, dr. Aurélio continua um sedutor. Mas, agora, seus olhos são apenas para Mariete que, generosa (e sábia), manteve na casa as fotos e os quadros de dona Lourdes. “Para que eu vou mexer? É a história dele”.

Belém, 13 de junho de 2013
Belém, 2 de maio de 2020

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
Todas as crônicas publicadas no Ignatiana

Imagem: Renata Barros — Cadeira, 1989.

Crônicas de João Carlos Pereira

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