O verbo mangar como expressão da minha liberdade

Diário de um desespero – ou quase – XXXIX

João Carlos Pereira

Algumas pessoas já me perguntaram de onde desencavei o verbo mangar, que tenho usado, com alguma frequência, nas crônicas desse tempo desesperado, ou quase perdido, como diria o Marcel Proust. Ele veio do chão da minha infância, na Cidade Velha, onde nasci e vivi até os cinco anos, quando comecei a ouvir que “mangar” dos outros era feio. Foi o começo da minha repressão.

Nascido numa família catolicíssima, brincava de rezar missa para as bonecas da minha irmã. Como ainda vivíamos a era pré-conciliar, a posição do sacerdote era de costas para os fiéis, dizendo coisas ininteligíveis, porque, na vida real, a missa era rezada num incompreensível latim. Somente depois de João XXIII, agora São João XXIII, é que a coisa mudou e cada povo pode celebrar na sua língua, com os padres dizendo a missa de Paulo VI, igualmente canonizado.

Em casa, o catolicismo era a religião oficial, mas convivíamos, abertamente, com o espiritismo kardecista do meu pai e com a umbanda praticada secretamente por outras pessoas que não gostariam de ter esse segredinho besta revelado. De dia, missa. De noite, batuque. Isso, no Brasil, é coisa tão comum, que deveria até ser oficializado como prática de sincretismo.

Eu me pelava de medo de tudo. Das torturas do confessionário, às quais alude o papa Francisco, para falar de misericórdia, não de terror, onde um padre tentou tirar de mim culpas inexistentes, das conversas sobre espíritos, durante as quais meu pai explicava, para os curiosos, com detalhes, como era a vida depois da morte, e os ritos afro-brasileiros, cujas descrições eu gostava de ouvir escondido, por trás das portas, só para sentir medo à noite. Era tanto “não pode, não pode, não pode”, que eu acabei virando uma criatura travada, medrosa, que fazia de tudo para ser gentil a tudo e a todos, ao padre, ao pregador espírita, às almas do umbral, aos pais de santo, que acabei me tornando uma personagem de mim mesmo.

Para não desagradar a seu ninguém, pintei uma linha maluca, restritiva e cruel, sobre a qual andei a vida toda, até cair de cara no chão, atacado por uma tristeza sem causa (sem causa? kkkk), que me obrigou a descobrir quem era eu, de verdade, e o que havia feito da minha vida. Não digo por sorte, porque isso é movimento de loterias, mas pela graça de Deus, comi o pão que o diabo amassou e conheci os caminhos do meu inferno. Quantos anos nessa purgação? Não contei, mas não foram poucos, Acho que o pico da crise, para usar uma expressão da moda, foi 2017, quando o tsunami me pegou de jeito. Quem leu as crônicas que publiquei no Liberal, por esse tempo, haverá de se lembrar.

Naquela época, apenas uma pessoa se manifestou claramente: Francy Meira. Não havia segunda-feira, dia da publicação, em que ela não ligasse para reclamar do tom sombrio, das tristezas manifestadas, da angústia escondida no meio das frases.

Como não é senhora de meias palavras, o que vem a ser uma qualidade rara, porque, apesar da educação, não se esconde atrás da cortesia e diz o que precisa ser dito, com jeito e moderação de quem sabe viver, o que faz dela uma mulher extraordinária, dona Francy – é assim que eu a trato, apesar dos imensos e constantes protestos para tirar esse dona, ao qual me habituei – primeiro passava um raspa: “acaba com isso, João!”. Depois procurava ajudar, oferecendo o ombro amigo, dizendo palavras de conforto. Ela e o marido, o dr. Alcyr, foram dois anjos na minha travessia. Ninguém pode imaginar, nem eles, o quanto me ajudaram e o tamanho da minha gratidão.

Se na vida eu conseguia manter um sorriso no rosto, no texto eu escancarava a dor. De vez em quando batia uma brisa e dava uma aliviada nas crônicas. Por muitos meses, enquanto rasgava a alma e esgarçava o coração, num processo de psicoterapia que me fez voltar à realidade e azeitar as engrenagens enferrujadas da face, o texto, a crônica, me serviram como respiradouro.

A palavra foi o oxigênio de que me vali, quando o ar me faltou, a cor dos olhos da vida, diria Mário Faustino, sumiu e o verbo travou. Foram anos de imensa solidão e de grande dor, embora, por fora, mantivesse a serenidade. Desta vez, não era algo para camuflar, para fazer de conta. Era para me proteger. Uma espécie de nova pele que se formava, uma couraça para a vida.

Se, nessa ocasião, tivesse publicado as crônicas nas redes sociais, elas não seriam de um quase desespero, mas de uma autêntica implosão, seguida de reconstrução, a partir do medo. Foi preciso muito mais do que coragem para me expor tanto. Era uma questão de sobrevivência emocional. Graças a Deus passou e, hoje, me recomponho com vigor para um tempo que não sei se terei para viver.

Se sobreviver à pandemia, vou recuperar algumas dessas crônicas, que pensei em transformar num livro incialmente batizado de “Vozes do fundo do poço” e uni-las a deste diário, com um novo título. Logo, quem leu até aqui, não terá lido tudo.

Como não podia (ou não queria) me indispor com ninguém e, sobretudo, comigo mesmo, mantive uma sobriedade que acabou solidificando minha personalidade. Ainda bem que eu soube fazer a diferença entre o que era essência e o que virou aparência. Por um triz não sufoquei o moleque que havia e, cada vez mais, há em mim e tem pulado feito um polichinelo, na minha frente, se exibido, como a que me dar lições de felicidade. Quando comecei a expirar o ar despoluído dos meus pulmões, o verbo mangar brotou em meu texto e na minha fala cotidiana, na forma de uma bela e libertadora espreguiçada. Voltou como uma gargalhada. Ou como um riso contido, que não tem vergonha de existir. Um riso sem-vergonha, protegido (mas não contido) pelas mãos.

Mangar, como disse há pouco, é uma palavra dos meus primeiros anos, quando tudo que ele poderia expressar me era duramente proibido. Não podia rir de nada, nem de ninguém, que ouvia logo o ralho: “é feio mangar dos outros. Deus castiga”. Essa história de “é feio” quase acabou comigo, assim como o “castigo” de Deus virou um tormento. Se eu não andasse na linha (a linha de que falei no começo deste texto, uma personagem inquisidora criada por mim para me flagelar), o “castigador” atiraria um raio na minha vida. A conversão ao catolicismo de verdade acabou com essa condenação prévia e com tudo que era preconceito, medo, angústia, incerteza, idiotice, babaquice, vendas, mordaças e grilhões. Quando digo isso, poucos acreditam que estou falando da religião católica. Mas estou.

Mangar significa rir, debochar, fazer pouco, brincar, com zero por cento de intenção de magoar alguém, de caluniar, de maldizer o outro e suas mazelas. Nunca ri de leproso (havia tantos, pela rua, nos anos 50/60), de cego, de aleijado, de feridento, de lunático, de torto, de manco, de ninguém assim. Conheci um caolho e o máximo que pensava era numa distante semelhança com Camões, que também era caolho. Uma vez, avistei um rapaz preto, bem preto, de bermuda, sem uma perna, que andava aos pulos, se equilibrando como podia, coitado. Antes que eu tivesse tempo de pensar, uma criança que estava perto de mim disse o que eu não ousaria falar: “mamãe, lá vem um saci”. Claro que levou o maior esculacho da mãe, por ter sido apenas o que era: uma criança. É assim que se começa a entortar uma pessoa.

Desde que me despi de mim próprio, passei a mangar de tudo que me dava vontade. Pode ser a maior bobagem do mundo, com, por exemplo, a cara de um macaco, no Museu, que eu mango. Mangar não é vingança, é rir daquilo que a vida oferece como alternativa à chatice e às superficialidades mentirosas do cotidiano.

O que mais se presta à mangação é moda. Agora os homens estão usando uns ternos tão apertados, com uma lapela estreitinha, umas calças apertadíssimas, a bem dizer grudadas nos caniços, uns sapatos bicudos, próprios para matar grilo na quina da parede, que eu não posso deixar de mangar. Alguém dirá: é recalque, porque não tens corpo para tanto. É não, minha senhora. É porque é ridículo mesmo. “Mas é moda em Paris!” Dane-se a moda, dane-se minha amada Paris, que nada tem a ver com isso.

Outa coisa de que mango com gosto é de “falsifiqueishions”. Está na cara que a criatura não tem cacife para comprar um objeto autêntico e adquire um arremedo, uma segunda linha qualquer, e sai desfilando uma “Prada”, por exemplo, na feira. Mesma coisa vale para quem gasta o valor de um carro numa de verdade. Dessas eu mango também. Para que esse exagero? Aí não vai tardar a aparecer um que, pensando em me desmascarar, falará em recalque, porque não posso comprar algo do gênero. Não posso mesmo! Então é de mim que vou mangar.

Uma vez, acompanhando um amigo num shopping de luxo, em Brasília, desses em que a gente quase paga para chegar ao piso das lojas finíssimas, vi, numa vitrine, uma bolsa de quase 60 mil. Nem que eu tivesse ganhado sozinho na Mega da virada daria 60 mil por uma bolsa para minha mulher, porque ainda não estou doido e muito menos ela, para desejar. Mais adiante, achei um vestido que ela gostaria de ganhar. A etiqueta estava meio dobrada e parecia que o preço era mil reais. Se fosse parcelar de cinco vezes, até daria para ousar. Entrei todo animadinho e, quando a vendedora me fez ver a realidade, quase tive um troço. Eram dez mil e cem reais. Saí mangando da minha idiotice. O vestido era lindo. Pena que não fosse para o meu bico.

Não quero, com essa conversa, dizer que não sei o que é bom e que sou capaz de apreciar. Conheço bem a dimensão dos luxos e entendo, de há muito, que qualidade tem preço. Às vezes, uma roupa é baratinha, mas não dura dois meses. Outra, mais cara, é capaz de permanecer inteira por anos e anos. Isso não é luxar, é ser inteligente e saber poupar. Uma joia é uma joia e uma bijuteria é uma réplica. Na hora de um aperto, a joia vele, pelo menos, o peso do ouro para ser derretido. Uma bijou só presta para fazer de conta que é joia. Antiguidades, quadros, livros, coisas de que muito gosto, são objetos de real valor, não vitrine para ostentação vulgar. Toda ostentação, aliás, é vulgaridade dourada com spray.

Uma vez, passei por uma loja Armani e vi um paletó de 200 euros. Naquele tempo, eu ainda perdia meu tempo olhando isso. Como não queria passar o dia carregando sacola, deixei para comprar na volta. Um Armani, por 200 euros, era para comprar três. Bati perna, bati perna e acabei topando com outra Armani, onde o terno mais barato era mais de mil. Besta, julgava que a loja perto do hotel estava em liquidação. Afinal, se não era o mesmo modelo, pelo menos parecia igualzinho. Mas de longe. No final do dia, entrei na tal Armani e pedi para ver a peça. Para minha surpresa, não estava numa Armani, mas numa Armandi. Estou mangando dessa idiotice até hoje.

Mango de uns modelos de sapato que mais parecem feitos de resto de material de construção, ou brilham no escuro. Mango de roupa mais apropriada para baile de carnaval do que para usar numa recepção elegante de verdade. Mango de gente que se acha, e sobretudo, de quem se tem plena certeza. Mango de quem pensa que é aquilo que a folhinha não marca e de idiotas com tanta autoestima, que se denunciam fakes na primeira fala. Mango de quem arma caras e bocas, de quem curte fazer pose, arrotar vantagens, exibir o que não é ou sabe, só pede vinho carérrimo, porque toma o rótulo e não o conteúdo. Rapidamente a província se encheu de sábios enólogos e de gente que conhece tudo, explica qualquer tema e, da noite para dia, com base na internet, vira especialista em qualquer assunto. Fujo desse povo, porque gosto mesmo é de mangar das minhas doidices e das minhas limitações, que também atendem pelo nome de defeito.

Quando chega a hora de trocar de carro, já saio de casa mangando da minha cara. Entro na loja e a mulher pensa, porque me vê na televisão, que meu salário deve ser parecido com o do William Bonner e vai logo me mostrando o modelo mais caro do salão. Convém dizer que a cena se passa numa revendedora Fiat, porque minha fidelidade à marca italiana é tão eterna como Roma. Não passo nem na porta de concessionária de veículos importados, japoneses, papa fina para criaturas de muitas posses. Com jeitinho, vou explicando que prefiro algo mais em conta.

Por dentro, já estou mangando. Deixo-a exibir os palacetes sobre rodas e me mostrar as maiores novidades do automobilismo mundial e me contenho para não cair na gargalhada, debochando da minha dureza. A criatura custa a entender (ou não quer) que não tenho dinheiro para gastar com carro. Quando já apresentou tudo que é top, cai na real e vai, desapontada, me mostrar os “populares”, atitude que devia ter tomado desde o começo, mas o valor da possível comissão brilhava mais forte.

A fim de simplificar de vez minha vida, pergunto se conhece São Francisco. Ela diz que sim e reforço que é o santo dos pobres. Para liquidar a conversa, desenho a compra: “pense que você vai vender um carro para São Francisco”. Não que eu seja São Francisco, porque estou longe disso, mas o exemplo resolve a parada e saio com o mais popular dos populares que, depois da primeira volta, já não seria revendido pelo mesmo valor que paguei. Fico feliz com o que pude comprar e, sobretudo, pagar, mas continuo mangando.

É assim que vou mangando pela vida. Me libertando de tudo que não seja verdadeiro e me aprumando na minha realidade, que, por ser a única que possuo, gosto demais dela e me dou muito bem comigo mesmo.

Se alguém me disser que fui muito corajoso ao escrever tudo isso, não vou negar, nem mangar, mas responder com toda sinceridade. Não precisei somente de coragem para ser quem eu sou. Bastou, sobretudo, que desejasse ser verdadeiro. Quando se tem essa meta, o resto fica fácil.

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Rinaldo — Riso Engodo, 1986.

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