Flores e amores a quem ainda vive
Diário de um desespero – ou quase – XXX
João Carlos Pereira
Não sei se existe uma pessoa que goste de velório. Se alguém me vir num, exceto no meu próprio, cuja presença será indispensável, pode ter certeza de que o finado era muito querido, ou que tinha especial apreço pela família enlutada, como se dizia antigamente, quando ainda havia anúncio fúnebre nos rádios. Tirando isso, não faço social da morte. Se a despedida é um ato de fé e de piedade cristã, como também se anotava, lugar-comum, nas notas de jornal, prefiro manifestar os dois sentimentos, de uma vez só, na missa de sétimo dia, momento em que o povo ainda lembra do finado com saudade. Na de trigésimo, só vai a família. Na de um ano, já era. Depois é melhor apenas mandar colocar o nome da alma na lista de intenções e deixar que desconhecidos orem por ela. Infelizmente é a lei da vida. Ou da morte, não sei.

Tirando os escândalos, as gritarias, o abraço no caixão para que o morto não se vá, como se isso não passasse de consciência pesada, porque quem ama, de verdade, entende o valor do silêncio que a hora exige, o que mais detesto é o comentário quase inevitável: “Ainda era tão novo”… Quantos anos tinha? Oitenta e alguma coisa, quase noventa”. Pior que isso é o terrível: “estava tão bem….” Ora, se estivesse, não teria morrido. O mais chato de ouvir é que o “de cujus”, uma peste em vida, um cão, um péssimo, era, no fundo, uma boa pessoa. “Só se for no fundo da sepultura”, tenho vontade de completar. Por isso evito ao máximo ir a velórios.
Nestes dias terríveis de agora, a televisão tem mostrado tanta cena de enterro, que fica inevitável não pensar no assunto. Imagino que pessoas boas e queridas estejam, de fato, partindo, o que é péssimo, sem direito a um adeus e sem cortejo fúnebre. Deve doer muito. Mas não é de agora, nem por causa da pandemia, que tenho procurado dizer às pessoas e quem realmente prezo o quanto gosto delas. Depois não valerá mais a pena.
A idade vai trazendo esse tipo de consciência para a vida da gente. É bom que alguém saiba o valor real que possui em nossa vida, não apenas por olhares ou abraços, mas entenda isso por meio de palavras. Dizer de amor, de amizade, de afeto, de bem-querer, de estima, de apreço, de admiração, de carinho, de ternura, de simpatia, de delicadeza e de mais quantos sinônimos aqui coubessem significa oferecer flores sem motivo ou razão aparentes, apenas pelo bonito gesto de ofertar.
Sei que é desconcertante abraçar alguém e sussurrar, no meio do gesto, que se gosta daquela pessoa. Não é usual, infelizmente. Mas deveria ser. Tenho revelado isso a quem quero bem e percebo o susto. A vida tirou de nós a espontaneidade, a leveza necessárias para a felicidade simples.
Tomara que, quando tudo isso acabar, ninguém precise mais esperar um velório para dizer a terceiros o que deveria ter sido falado para a pessoa que não mais vai poder saber o quanto era querido. A recíproca, quase sempre, seria verdadeira. Mas inútil, naquela hora.
A energia do planeta estará pronta para frases de amor desinteressado e, por isso mesmo, muito verdadeiro.
20 de abril de 2020
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João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
Todas as crônicas publicadas no Ignatiana
Imagem: José Antônio da Silva — Enterro, 1949
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