O Mata Velho, o Pega Velho e o Serra Velho

Diário de um desespero – ou quase – XXVIII

João Carlos Pereira

Apelido em famosos, no Brasil, é uma coisa que pega depressa. Mal o substituto do ministro Mandetta assumiu, ficou logo conhecido como o “mata velho”. Dessa pecha não vai se livrar tão cedo, ou nunca mais, por conta de uma declaração que, precisando escolher entre um rapaz e um velho para usar o respiradouro e, assim, salvar-lhe a vida, vai preferir o que tem menos quilometragem, porque o outro já deu o que tinha para dar. É um estranho critério de desempate, um par ou ímpar mortal, viciado, jogo de cartas marcadas. Um jeito cruel de optar por quem vai e por quem fica. Claro que, oficialmente, na condição de idoso, não curti a brincadeira do doutor…

Há alguns dias, circulou nas redes sociais a imagem de um carro policial, que me fez lembrar de um dos medos de minha infância: a carrocinha dos cachorros. Era um veículo velho, parecido com um Jeep, que trazia atrás uma enorme gaiola de ripa. O funcionário da Prefeitura, quando enxergava um cão vadio, laçava-o e o enfiava na cela. Para onde era levado, ninguém sabia. Diziam que o animal era sacrificado e virava sabão. Meu amigo José Fragoso Rei, dono da Fábrica Santa Maria, me assegurou que cachorro nunca entrou na lista ingrediente para fazer o produto. Pois diz que, em São Paulo, foi criado o “Pega Velho”, uma espécie de camburão para tirar velho teimoso da rua e conduzi-lo de volta para casa. Se é verdade, ou fake, não sei. Mas faz sentido. Se estivesse lá, eu é que não ia me meter em rua para desfilar na carrocinha de velho. Vergonha tem limite.

Em tempos de Mata Velho e de Pega Velho, falar do Serra Velho é mais do que oportuno. Trata-se de uma “brincadeira” que acontecia em Bragança, depois que soava a meia-noite da sexta-feira santa, a fim de que os “serradores” não profanassem o dia da morte do Senhor. Não encontrei outro nome para o curiosíssimo ritual que não fosse brincadeira, porque a ele posso acrescentar a expressão “de mau gosto”, porque não passava disso. Talvez molecagem, mas vem a dar no mesmo. Era a transgressão das transgressões politicamente incorretas. Mas qual vivente pensava nisso, naquele tempo-foi?

Era assim: o grupo, chefiado por um certo Marreca, figura tradicional da Bragança dos anos 20 ou 30 do século passado, conhecido por suas faculdades de curandeiro, capaz de salvar uma pessoa apenas com uma sangria, usando um caco de lâmina com o qual também matava porcos, realizava o macabro levantamento de quem estava com pé na cova. O critério não era doença, mas a idade avançada. Havia plano A, B,C,D, E, abecedário completo, para “serrar” o velho, ou a velha, na madrugada do sábado santo.

O plano consistia em zombar da velhice, da caduquice e de todos os seus apetrechos. Escolhida a vítima, o plano era o mesmo. O grupo esperava virar a meia-noite e ia para baixo da janela do velho.

No silêncio da noite bragantina, o Marreca batia levemente, com o nó dos dedos, no tabique da janela e, com voz doce, fingindo ser uma vizinha, chamava pelo nome da vítima. Os velhos ficavam de sobreaviso, porque, em cidade pequena, a informação corria mais rápido do que hoje, via zap. Não podiam responder ao chamado, porque seriam “serrados”. Muitos estavam prevenidos, mas eram tomados pelo sono, pelo esquecimento e, quando o Marreca e seu bando conseguiam enganar a criatura, estava decretado seu fim.

Eles se cobriam de andrajos, porque a vingança do “serrado” era fedorentíssima. Se o infeliz condenado não abrisse a janela, o cortejo seguia em frente, até que um descuidado, esquecido, caísse na conversa e achasse mesmo que estava sendo convocado por alguma vizinha para ajuda de emergência no começo da madrugada. Ao abrir a janela, ouvia lata batendo como se fosse um sino, cuíca gemendo, gato miando, algazarra generalizada. O Marreca puxava o coro: “e a dentadura da fulana, para quem fica?” Os demais, fazendo as vezes do coro, respondiam: “ fica para beltrano”. “E a calcinha? E a anágua, e o penico, e a cuinha de mijar, e o cachimbo, e caixinha de rapé?” Cada herdeiro dos pobres pertences ia sendo nominado, até que o futuro-quase-defunto tivesse o “testamento” totalmente repassado.

Quando o velho entrava na brincadeira e não resistia à galhofaria, a humilhação era menor. Mas se estivesse preparado, com um pinico cheio de urina choca, acumulada por dias, para jogar nos serradores, a coisa ficava mais feia. Eles usavam uma roupa bem surrada, porque aquele cheiro de mijo não saia nunca mais. Era uma brincadeira estranha, todo mundo sabia que iria acontecer e nunca se teve notícia, mas convém perguntar ao professor Dário Benedito, memória viva dos bragantinos, se alguma vez a polícia foi incomodada.

Quem contava essa história era a Lindanor Celina, que a escreveu, com todos os detalhes, no romance “Menina que vem de Itaiara”, o nome fictício de sua Bragança querida. Era a Pasárgada de Bandeira; a Aruanda de Eneida. O território livre, terreno do sonho, no qual entrava e saía sem precisar de passaporte. Itaiara é a terra do nunca. É minha Paris idealizada, quando estou por aqui. Lá tudo pode acontecer e ninguém é preso, humilhado, sofre frustração ou adoece e morre de corona vírus. É minha Paris inexistente.

Muito gostaria de assistir a um Serra Velho ou mesmo de participar dele. Já até escuto as vozes de minhas filhas, me recriminando? “Creeeedo, pai. Que coisa horrível! Tu és tão católico, não estás vendo que isso é uma crueldade com os velhinhos? Se eu estivesse lá, não ia te deixar entrar numa coisa dessas”.

Filho é assim. Pensa que manda nos pais. Às vezes manda, como agora, quando não me deixam colocar o pé na rua e fazem a maior chantagem emocional, alegando que não desejam a orfandade. Nessa hora é que me dá uma raiva…. Órfã fica criança pequena, desamparada, coitada, sem eira nem beira, que será criadas às custas da caridade alheia. Mas elas, tamanhas mulheres….? Pois eu ia, sim, participar da turma do Marreca e serraria um velho todo ano, até que chegasse a minha vez. Aí passaria de pedra para telhado e fosse o que Deus quisesse. É a lei da vida.

O “Serra Velho” era uma coisa meio macabra, mas não mais do que, na minha ingenuidade de criança, ver um defunto. O primeiro que enxerguei, jamais esqueci. Estava confinado no seu pobre caixão bem baratinho, parecia feito de papelão, num roxo mortalha, desbotado, sobre a pedra daquele antigo necrotério da Santa Casa. O prédio ainda existe, parece uma capelinha, no canto da Bernal do Couto com a Generalíssimo, um pouco antes da clínica do Claudio Acatauassu, meu amigo, médico e padrinho. Era de noite e passamos por ali, quando alguém alertou: “hoje tem um!” O homem usava uma camisa azul, tinha as mãos sobre o peito e ia passar a última noite de sua vida (ou seria a primeira de sua morte?) naquele ambiente para o qual só eram levados os desvalidos.

Quem disse que, chegando em casa, eu conseguia dormir? A imagem não saía da minha cabeça de criança. Se eu fechasse o olho, via novamente o morto e temia que, tendo uma chance, se levantaria e ia me perseguir, pelo simples fato de tê-lo visto em sua horrorosa e derradeira condição. Era como se fosse uma vingança por ter mangado – mas o pior é que não manguei – de seu estado cadavérico. Para mim, a qualquer minuto, o falecido entraria pela porta do meu quarto e viria soprar no meu ouvido, me cutucar com a ponta de seu dedo gelado, fazer careta, meter medo, enquanto eu protegia meu rosto com o lençol. Ele executaria a dança dos mortos, uma espécie de sapateado com as pernas abertas e os braços arqueados para frente. Aquele pobre defunto, que jamais soube da minha existência, nunca mais me deu paz. Sorte que não vi sua cara de morto, porque estaria sem dormir até hoje.

Nunca tive medo do Cheira-Éter, da Maria-Igarapé, da Arara, do Maxico, do Boró ou de outras criaturas que a cidade maltratou, ignorando-lhes a dor, o vício e a solidão. Desses também nunca fiz pouco ou atentei, como, de resto, poupava sobretudo cegos, mendigos e aleijados. De uns tempos para cá foi que passei a mangar de quem me dá vontade. Mango sozinho, de dentro do carro, coisa minha, sem maldade. Menos, é claro, dos desassistidos da sorte. Acho graça da vida e de todos. Acho graça, especialmente, de mim e de minhas doidices. Essas narrativas nada mais são do que eu caçoando de mim mesmo, dos meus medos, dos meus pavores, das minhas loucuras, das minhas enormes inseguranças.

Não sei que nome dar a isso, mas quando a gente consegue se divertir às próprias custas, é sinal de que está com a cabeça no lugar e que se perdoou pelas besteiras do passado, de modo particular, pelas de agora, ampliando o perdão para o amanhã, depois, depois, depois….

Quanto ao Mata Velho, desse não mango, não. Para ele rogo é praga, dou vaia, bato panela, porque critério de seleção, por idade, só serve mesmo para concurso público, no qual o tempo de vida é valorizado. E esse, se não me engano, é o último dos últimos recursos.

Xô, urubu. Xô, Mata Velho. Mesmo assim, de coração, desejo boa sorte nessa tarefa de salvar o povo, que não aceitaria nem por todo dinheiro do mundo, quanto mais por salário (e status) de ministro.

Belém, 18 de abril de 2020

P.S. Fazendo as contas, se cada quarentena são 14 dias, já terminei minha segunda. Será que posso ganhar rua? Tenho uma quarentena de ganho.

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Vincent van Gogh (1853-1890) — Worn out, 1882. Van Gogh Museum, Amsterdam.


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