Desorganização do Estado e novos acordos políticos

Evidência de desorganização do Estado em setores sensíveis impõe necessidade a novos acordos políticos

Passados praticamente dois meses da deflagração da crise dos ‘descontos indevidos no INSS’, que afetam um número indeterminado do total de cerca de 40,0 milhões de benefícios mensais de aposentados e pensionistas (Regime Geral de Previdência Social – RGPS); a capacidade de resposta do Estado ao problema detectado e à própria detecção ainda percorrem caminhos indefinidos. O tamanho do problema real e a reparação dos danos sofridos por um público da base humilde da pirâmide social impõem danos políticos sérios ao governo de plantão, mesmo sabendo-se intuitivamente que o problema é mais antigo e que reflete certa desorganização administrativa endêmica do RGPS.

Na conjuntura política simultâneas à crise dos ‘descontos indevidos no INSS’ temos matérias preocupantes sobre outros setores igualmente sensíveis das políticas públicas, também afetados por ações e inações dessas políticas – o meio ambiente em pauta de desregulamentação das licenças ambientais (PL do Senado Federal de maio de 2025) e a paralisia das iniciativas tributárias do Executivo federal no Congresso que afetam progressivamente a distribuição de renda (caso do Decreto de majoração de alíquotas do IOF), com Medida Provisória substitutiva na mesma linha, e de todo o conjunto de mudanças tributárias paralisadas da Reforma Tributária. E todos os eventos paralisantes ou de ‘flexibilização’ de regras ambientais citados têm digitais visíveis do Agronegócio (Frente Parlamentar da Agropecuária- FPA), do sistema financeiro e do “Centrão”, à margem da identificação partidária explícita.

Pode-se resumir em dois grandes focos de paralisia ou retrocesso político na conjuntura: o espaço rural e o conjunto da Política Social. Mas esses campos contam com respaldo de direito muito forte na Constituição Federal de 1988. No caso do espaço rural (Arts. 184 a 191) estão explicitadas regras muito claras de ‘política agrícola, fundiária e reforma agrária’, sem qualquer apoio político do tripé – FPA, ‘Centrão’ e Sistema Financeiro. E no caso da Política Social, as regras da Seguridade Social objetivamente estabelecidas ( Arts. 193 a 204) são a bola da vez do Sistema Financeiro. Este pela voz de seus interlocutores no Congresso insiste no corte de gastos em Saúde, Previdência e Assistência Social, na linha substitutiva às iniciativas de Reforma Tributária progressiva combinada às reduções de bilionárias isenções tributárias vigentes (acima dos quinhentos bilhões de reais neste ano fiscal de 2025).

Por outro lado, a realidade administrativa do Estado revela algumas debilidades sérias nos órgãos encarregados da gestão territorial (INCRA, IBAMA-ICMBIO, FUNAI, AGU etc.) e da Seguridade Social (Previdência Social, Saúde e Assistência Social), cujos aparatos-fim administram os vários territórios sujeitos a distintos regimes fundiários ou cuidam da população em matéria de proteção social. As causas da debilidade administrativa como também da falta de adequado apoio político às regras constitucionais são complexas e não tenho espaço aqui para tratá-las em profundidade. Tão somente estamos chamando a atenção aos sinais da conjuntura, que não são eventos fortuitos; mas indícios claros de que sem providências políticas e administrativas reparadoras, tais sinais caminhariam para provável aprofundamento caótico.

Parece-nos evidente que o acordo histórico, que gerou a Constituição de 19878 nesses dois campos essenciais ora abordados, vem passando por perigoso processo de erosão política. Esse processo é de disputa por um lado – de território para incorporação ao mercado de terras à margem das destinações constitucionais; e por outro, é uma disputa pelo orçamento público dos fundos constitucionalmente vinculados à Seguridade Social. E essas disputas estão na origem da desregulamentação agrária e ambiental e do ataque ao Estado Social. Mas sem Estado Social e Política Agrária legítima desaparece de fato a República Federativa do Brasil em suas finalidades, como conceitua o Art. 3º da Constituição Federal.

Resolver os dilemas da conjuntura política e econômica é também condição de sobrevivência dos profissionais da política. E a isto muito bem se referiu o Ministro Hadad ao chamar a atenção do Congresso para as responsabilidades envolvidas na discussão do IOF e da norma substitutiva relativamente as mudanças estruturais necessárias à parte mais sensível da Reforma Tributária.

É bom lembrar que desorganização do Estado, mesmo que seletiva aos aparatos legítimos da proteção social e territorial é aposta de altíssimo risco. Provoca alta entropia da administração pública e inversão das finalidades do Congresso relativamente à ordem constitucional. Cria-se nesse contexto ambiente caótico para que se alcancem fins escusos. E não há evidência histórica duradoura no Estado Democrático, de sucesso a tais tratativas que não sejam passíveis de reversão. Ninguém sai incólume do caos, por mais esperto que se julgue. O papel histórico da política em sociedade é transformar caos em cosmos, mas nunca o seu inverso, como insistem na conjuntura muitos oportunistas de plantão.


Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Imagem: Siron Franco. Um Certo Político, ou Fabricante de Armas, 1984. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.

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