A redescoberta da contemplação

Daniella Ribeiro de Pinho

Advirto quem me lê que não pretendo fazer nenhum estudo do tema “contemplação”. O que ofereço é o relato da experiência (e a narrativa que dela decorre) vivida no meu último retiro de 8 dias em Itaici.

Nós, habituados (mas nem sempre habitantes) da espiritualidade inaciana, sabemos que a metodologia de Santo Inácio nos propõe a contemplação como um dos modos de orar. Não posso dizer da época de Inácio (porque nela não vivi), mas posso me arriscar a falar que, nos nossos atuais tempos, contemplar é um verdadeiro desafio.

Teólogos e estudiosos da espiritualidade e pedagogia inacianas nos ensinam que a contemplação pode ser qualificada como uma forma de oração passiva, tal qual a contemplação de um quadro. Olhamos para ele e somos impactados. Distinta, porém, é a meditação, em que nos detemos numa palavra ou palavras que mais nos afetam e sobre as quais refletimos com nossa inteligência e memória. Na meditação, mastigamos o texto. Na contemplação, vemos o texto.

Contudo, do saber racional para o saborear internamente há um oceano de distância. Distinguir, em palavras, a meditação da contemplação é, em certa medida (e longe de qualquer falsa modéstia), fácil. No retiro, porém, não se busca (ou não se deve buscar) capacitação ou aprofundamento teológico dos princípios e fundamentos da espiritualidade. Busca-se a experiência. Busca-se a presença de Deus. E, para isso, Santo Inácio nos propõe um modo de orar imaginativo e afetivo. Conseguimos, de fato, sair da meditação e nos lançar na contemplação?

Volto ao comparativo da oração contemplativa à contemplação de uma obra de arte. No retiro, percebi que eu estava, digamos, enraizada na meditação. Julgava-me contemplando… Mas estava mais meditando. Notei verdadeira a dificuldade em contemplar, não porque seja um modo exigente de orar, mas porque, talvez, nos exija habilidades um tanto atrofiadas. Ocorreu-me que, se sequer sabemos contemplar um quadro, como contemplar uma cena bíblica?

Queremos a informação rápida, instantânea. Afinal de contas, temos pressa. Não raro levamos essa maneira de vencer os dias no cotidiano para nossa relação com Deus. Contemplar exige uma pausa e uma disponibilidade que nos esquecemos como se faz. Uma pausa despretensiosa e desinteressada. Desinteressada não no sentido da inexistência do desejo de Deus. Esse desejo está lá. Deve estar lá. É ele que nos move a contemplar. A pausa desinteressada aqui diz respeito à espera por aquilo que o Senhor quer nos dar, e não a respeito daquilo que gostaríamos d’Ele receber.

Nosso dia a dia corrido, cheio de horários a cumprir, atividades por fazer, metas a alcançar, em que o tempo disponível parece escasso para tantas tarefas, tirou-nos o saber e também o sabor da pausa. Quando conseguimos tempo para aquietar e rezar, já começamos cheios de interesses: preciso resolver isso; preciso dessa resposta para esse dilema; preciso desse descanso; preciso dessas virtudes; preciso de mais tempo; preciso de mais atenção; preciso de mais organização. É tanta necessidade com pouca precisão. Não nego que, de fato, precisamos de tudo isso, e podemos e devemos (porque é legítimo) levar isso ao Senhor, que sempre com imensa ternura acolhe nossas aflições e inquietações. Mas para a contemplação, é-nos exigida outra postura. Nela, nosso único e exclusivo desejo deve ser a presença de Deus.

Não julguem que eu dispense ou desconsidere que podemos sentir Deus em tudo, em todos e em toda criação. Deus é comunicativo, criativo e se vale de tudo, visível ou invisível, para se comunicar conosco. Mas aqui quero demorar-me naquela presença que Deus se nos oferece na oração de contemplação. Aquela presença que nos é dada intimamente ao mirar a cena bíblica. Presença que se despeja em nós gratuitamente. Presença que não vem como resposta a problemas ou demandas, mas que vem como Presença. “Só isso me basta, Senhor”. Para tal presença não é preciso interpretação, tampouco esforço (seja intelectual, seja afetivo) para captar seu sentido.

Neste ponto, sinto necessidade de focar um instante no desejo. Desejo é essencialmente falta. Eu desejo aquilo que me falta. A pergunta, então, que nos vem (quando nos damos a oportunidade de nos demorarmos nas perguntas das quais tentamos escapar, como nos diz Tolentino) é “O que mais desejo?”. Ou “o que mais me falta?”. Ou ainda, “O que mais me faz falta?”.

Estava eu no retiro e o que eu naturalmente mais desejava era a presença de Deus. Buscava sentir, experimentar, saborear essa presença, porque era dela que eu sentia falta, porque sem perceber essa presença, as distrações, compromissos, preocupações tomam quase tudo…

Em contraposição à presença, há o sentimento de ausência de Deus, que é a crua desolação. Sentimento de ausência porque Deus aqui está sempre… E não me refiro aqui a qualquer desolação. Falo em crua porque nela só há ela, a desolação, e é nela que a falta de Deus grita, escancara. A ausência de Deus não é o nada. Nada é nada. Não é bom, não é ruim. É nada. Não fede, não cheira. Não tem gosto. A ausência de Deus não é o nada, porque o nada é insípido e indolor. A ausência de Deus dói. Acusa. Culpa. Envergonha. Faz perder o sentido de tudo, sobretudo das relações. Da própria existência.

A ausência de Deus é o tudo ao contrário, é a plenitude ao reverso. Se na presença há a plenitude do acolhimento amoroso de Deus, seu contrário é a eterna (por toda eternidade que ela dura) condenação à solidão. Solidão do eu desvirtuado, no sentido de despido de qualquer virtude. Nela, perde-se o norte, o sentido da vida.

De certa maneira, e de diferentes formas, buscamos (tropeçando, errando, acertando) encontrar sentido no que nos cerca. Vivemos interpretando o mundo desde que nascemos. Etimologicamente, interpretar é examinar as entranhas de um animal para prever o futuro. Estamos, pois, a todo momento, interpretando o que vemos, escutamos, tocamos (ou o que nos é tocado), cheiramos, provamos. Estamos constantemente examinando o mundo e as pessoas no afã de que essa compreensão nos dê alguma previsibilidade sobre o que está posto e o que está por vir.

Somos nós que ativamente (conscientemente ou não) tentamos entender o que está à nossa volta. E é essa compreensão que nos dá nosso lugar no mundo.

Então, o desafio em contemplar me parece que seja colocarmo-nos numa posição em que não somos nós que buscamos o sentido. É o sentido que vem até nós. Somos nós que, ao capturar internamente uma imagem, precisamos ser alcançados por Ele.

A presença suave que Deus nos concede na contemplação nos desafoga da obrigação de tentar entender ou de tentar encontrar.

A presença suave que Deus nos concede na contemplação nos desafoga da obrigação de tentar entender ou de tentar encontrar. Caminho difícil, mas transformador. Difícil e desafiador porque, como estamos sempre tentando alcançar ou interpretar algo, deixar-nos alcançar exige uma entrega e leveza com a qual eu não estava mais habituada. Ter essa experiência de ser alcançada pela Presença sem buscar respostas me foi reveladora. E puro alívio. Num mundo em que sobejam palavras, o sentir desinteressado e despretensioso (muitas vezes acuado em nós) clama por libertação.

Oxalá possamos cada vez mais mergulhar na sabedoria e delícias da Presença de Deus de que tanto desfrutou Santo Inácio em suas contemplações. Que, sem desmerecer o tesouro da oração meditativa, redescubramos a profundidade da experiência contemplativa simples. Que sejamos habilidosos não só com as palavras, mas também com a experiência íntima com o Criador por meio das imagens. E que dessa mesma experiência, do Deus que passa e fica, nos nutramos e nós mesmos nos transformemos em dons de Deus para toda a humanidade e toda criação.


Daniella Ribeiro de Pinho é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), CVX Santo Alberto Hurtado, Brasília (DF).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lígia de Medeiros

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

6 comentários Deixe um comentário

  1. Que texto profundo! A contemplação é um desafio não porque seja difícil, mas por nossa pouca experiência de fazer verdadeiras pausas!
    Muito obrigada por compartilhar essa experiência!

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  2. Lindo texto, Daniella.

    “É tanta necessidade com pouca precisão. Não nego que, de fato, precisamos de tudo isso, e podemos e devemos (porque é legítimo) levar isso ao Senhor, que sempre com imensa ternura acolhe nossas aflições e inquietações. Mas para a contemplação, é-nos exigida outra postura. Nela, nosso único e exclusivo desejo deve ser a presença de Deus.”

    Todo o texto vai nos ajudar a trilhar a estrada da Contemplação.

    Obrigada.

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  3. Que texto lindo, profundo e inspirador! Muito obrigada, querida amiga de caminhada e de vida, por tão preciosas e precisas palavras! A poesia que emana de suas palavras, toca nossos corações e nos convida de forma envolvente a entrega à contemplação! Em um mundo de corre corre, que bom pausar para te ler! Obrigada por esse presente em forma de texto!

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