Espiritualidade Inaciana: o tesouro e suas pérolas

Ana Cristina Monteiro Coutinho

Cresci numa família tradicionalmente católica, e que praticava essa fé. Então, desde muito cedo tive contato com as práticas da minha religião. Quando cheguei à adolescência, como acontece na maioria das vezes, me afastei das missas. Nessa época, na minha Paróquia começou um movimento para se formar um grupo de jovens incentivado por um padre recém-chegado, e que gostava muito de juventude. O grupo começou por meio da música e das leituras das missas das 18 horas, que ficou sendo chamada de missa dos jovens. Assim o grupo foi chamando à atenção, e a paróquia formou o seu grupo de jovens.

Nesse tempo fui convidada por uma tia, que frequentava a Igreja Nossa Senhora do Parto, no centro do Rio de Janeiro, e que era dirigida por padres jesuítas, para fazer um encontro de jovens do JAM – Juventude de Ação Mariana, uma proposta de renovação das Congregações Marianas.

A partir daí estava selado o meu futuro! Após o retiro continuei frequentando o JAM, até que fui convidada a conhecer outra proposta, chamada de CVX – Comunidades de Vida Cristã, que me levaria por uma estrada cheia de surpresas. Nesse momento, tive que fazer uma opção que me custou muito, mas foi necessária. Em 1978, eu estava iniciando a faculdade de enfermagem na Universidade Federal Fluminense (UFF), que exigiria muito tempo e dedicação. Não tinha como continuar no grupo jovem e na CVX. Resolvi ouvir meu coração e seguir na CVX, o que hoje percebo como projeto de Deus para minha vida. Eu só tinha 19 anos, e a proposta CVX era algo muito exigente: pedia compromisso com a oração diária, acompanhamento espiritual, retiro inaciano anual e participação semanal em uma comunidade de pertença. Confesso que muitas vezes tive vontade de desistir, mas algo mais forte me fazia ir em frente. Esse algo hoje vejo como o amor de Deus me levando a experiência sempre maior da sua presença em mim.

Na CVX, o tesouro da Espiritualidade Inaciana se abriu para mim, e de dentro dele fui retirando muitas pérolas… A primeira delas foi o Retiro Inaciano, iniciando assim, a minha experiência dos Exercícios Espirituais. Em 1980 foi realizada a primeira experiência de retiro personalizado de oito dias da CVX Brasil, em Japuíba, RJ. Lá estávamos nós, conduzidos por Deus, orientados pelos padres Cesar Augusto, SJ e Roberto Albuquerque, SJ. Eu tinha apenas 21 anos! Como fui agraciada e presenteada por Deus por tão cedo beber dessa espiritualidade. Essa experiência fundante me marcou tão profundamente que até hoje, passados 42 anos, eu ainda tenho o bloco de anotações, que eu volto de vez em quando para ler, e que reaviva em mim a certeza da escolha que fiz. Pela primeira vez na vida, eu experimentei o amor de Deus, que me acolhia como eu era de maneira incondicional, e assim eu também passei a me amar e aceitar. Uma filha cheia de misérias, mas muito amada. E essa é a finalidade dos Exercícios Espirituais: levar a pessoa a sentir-se totalmente abraçada por esse Amor, que supera qualquer miséria humana.

Estou há 44 anos na CVX e sempre desfrutando, por meio dela, da Espiritualidade Inaciana. Desse tesouro, eu fui tirando outras pérolas. O discernimento na busca da vontade de Deus é uma delas. Usando esse instrumento tive a oportunidade de ir aprendendo, seguindo o método do discernimento dos Espíritos, em momentos de decisões e escolhas importantes para colocar meus dons a serviço, para ir contribuindo na construção de um mundo melhor, no trabalho, na família e na Igreja. O discernimento sempre foi muito importante especialmente no meu campo de missão com os mais pobres e vulneráveis. Um dos critérios para o discernimento apostólico, na busca de fazer o maior bem possível é levar em conta as prioridades pastorais da Igreja, escolhendo o bem mais universal e urgente. Por meio da oração diária, orientação espiritual e revisão de vida e da missão, e com o suporte da minha comunidade CVX, foi se confirmando em mim que o trabalho com os pobres, na minha paróquia, era onde o Senhor me chamava a estar: por ser lá onde os gritos de justiça se fazem mais forte, ser o local onde ninguém está ou deseja estar, pois sempre são poucos, por serem os pobres os prediletos de Deus, e por desejar-me deixar evangelizar, não apenas trabalhando com eles, mas sendo amiga deles.

O mais desafiador com certeza é estar sempre em atitude de discernimento no dia-a-dia, e para isso outra pérola me ajuda, apesar de minha infidelidade, que é o exame diário. Mas mesmo quando sou infiel, Deus procura me falar por meio das constantes, que vai generosamente colocando no meu coração. Deus fala sempre que nos abrimos à sua intimidade.

Outras pérolas que me ajudam muito são as máximas ou ditos inacianos, que fui descobrindo na minha caminhada espiritual:

Salvar a proposição do outro, por exemplo,me ajuda muito a acolher sem julgar, valorizando a pessoa do outro que, assim como eu, busca dar o melhor de si, mesmo quando não consegue.

Usar das coisas tanto quanto me ajudam ao fim a que Deus me criou. Que imensa liberdade foi acontecendo em minha vida conforme fui aprendendo a olhar cada coisa em sua real finalidade e valor, e escolhendo aquilo que me aproxima de Deus e das pessoas, e colabora na realização do seu projeto para humanidade: ser filhos e irmãos.

Não fazer mudanças quando estiver desolado, quando as coisas não parecem claras, pois os afetos estão em desordem. Sou uma pessoa movida pela emoção, e isso me leva a atitudes precipitadas que, posteriormente, quase sempre me arrependo. Isso me ajuda muito, pois faço como é recomendado: rezo mais, procurando a paz interior pra ouvir o que o Senhor tem a me falar.

Outra pérola, a santa indiferença inaciana, que me encanta! Não é o tanto faz, mas ter consciência de tudo que me amarra e assim, com a graça de Deus, ir me desprendendo e sendo mais livre pra escolher sempre o melhor. E esse melhor para Inácio é o Magis, que eu devo sempre ter como um grande desejo de Deus para minha vida. Não me conformar com o menos, mas ir descobrindo o melhor dentro de mim, numa busca permanente para mais amar e servir.

São muitas as pérolas que fui encontrando dentro desse tesouro, a Espiritualidade Inaciana. E com certeza vou continuar tirando e buscando compartilhar com as pessoas esse imenso presente de Deus, que tanto transformou a minha vida. Sou imensamente grata a Deus, à Companhia de Jesus e a todas as pessoas que passaram pela minha vida, e me abriram esse tesouro, e me conduziram nesse caminho, que desejo continuar sendo uma peregrina como Santo Inácio de Loyola.


Ana Cristina Monteiro Coutinho é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade Nossa Senhora de Nazaré, Niterói (RJ).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Fayga Ostrower (1920-2001) — Silêncios, 1999. Enciclopédia Itaú Cultural

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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