Não farás um deus à tua imagem e semelhança
Luciano Fazio
No Brasil de hoje e, em particular, nos debates políticos, pessoas usam Deus para confirmarem suas afirmações, até com citações da Bíblia. Assim, passam a ideia de que elas estariam com Deus e quem discordar delas estaria contra Deus. Tal prática é perigosa, pois pode significar a exploração de Deus e da religião para outras finalidades.
Primeiramente, há de se reconhecer que na Bíblia você pode encontrar mensagens com visões diferentes de Deus, principalmente entre o Novo e o Antigo Testamento. Por isso, a leitura desse livro exige a capacidade de escutar e de distinguir o principal do acessório, com o cuidado de não buscar no texto apenas o que mais se encaixa naquilo que nós já pensamos, mas de acolher uma mensagem do Outro, que nos chama à conversão, a rever as nossas opiniões e posturas.
As figuras do Antigo e do Novo Testamento escutam a Deus, que as convoca a aceitar outro rumo de vida. A Abrão, é dito: “Sai de tua terra e vá, onde te levarei”. A mensagem para Jonas é: “Vai para Nínive, anunciar a boa nova aos pagãos”, mesmo que ele não quisesse. Maria escuta a frase: “Terás um filho, cujo pai não é José”. No caminho para Damasco, Deus faz Paulo ‘cair de cavalo’, transformando-o de perseguidor dos cristãos a apóstolo de Cristo.
Entretanto, não é difícil encontrar na Bíblia frases para confirmar o que você pensa, ou seja, um Deus à sua própria imagem e semelhança. Por exemplo, há trechos do Velho Testamento que apresentam um “Deus dos Exércitos”, que luta para aniquilar os inimigos de Israel, que pune com a morte quem não obedecer às suas ordens, que julga e não perdoa. Mas é este o Deus que nos revela Jesus de Nazaré? Claramente não.
Para o cristão a Bíblia é um livro escrito pelas comunidades de fé para preservar e transmitir o anúncio de Deus, feito de palavras, mas também de fatos e gestos em que Ele se fez presente. No entanto, o anúncio não se resume a este ou àquele texto ou episódio, mas é dado pelo conjunto da obra. O critério último para discernir o anúncio de Deus é a pessoa de Jesus. O Antigo Testamento, inclusive, deve ser relido à luz da mensagem de Jesus Cristo, que nos dá a correta chave de leitura.
Em particular, na atual campanha eleitoral, chama atenção a imagem distorcida de um deus que incita a pegar em armas. O candidato Bolsonaro chega a apresentar um Jesus pistoleiro, que “só não teve uma pistola, pois naquela época não havia”. É evidente a busca na religião por uma mensagem de ódio e de violência, a confirmar as ideias dele. Trata-se de uma manipulação e de uma blasfêmia de quem se faz surdo à mensagem do amor, da compaixão e do perdão do próximo. O deus de Bolsonaro é uma divindade à imagem e semelhança de quem quer eliminar os inimigos (que são as pessoas que não pensam como ele). Como cristão, não posso me reconhecer nessa divindade.
O problema não é apenas de um candidato e de seus seguidores. Quantas vezes, nós também somos tentados de criar um deus que se pareça conosco, que nos diga o que queremos escutar e que não nos incomode? No Pai Nosso, Jesus nos ensina a dizer: “Seja feita a Tua vontade, venha o Teu Reino”. Somos chamados a rechaçar a tentação de seguir falsos deuses, projeções de nosso desejo de glória, poder ou riqueza.
Neste outubro de 2022, peço a capacidade de renovar a minha fé em um Deus que não é meu porta-voz, mas que me chama para eu escutá-lo e fazer a vontade dele. Peço também a força e a coragem para não me omitir e sim para mostrar a minha fé no Senhor da Misericórdia, desmentindo os falsos profetas que usam o nome de Deus para promover mensagens de ódio e mentira.
Luciano Fazio é matemático pela Università degli Studi de Milão e especialista em Previdência pela Fundação Getúlio Vargas.
Imagem em destaque: Athos Bulcão (2018-2008) – Painel no Edifício Denasa, Brasília. 1975. Foto: Edgard Cesar (Fundação Athos Bulcão)
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.
Este é um texto que expressa um argumento totalmente claro e lógico acerca do deus de Bolsonaro e sua claque religiosa e autoritária que sim faz do verdadeiro conceito cristão de deus alguém impiedoso e cruel que foi feito à imagem e semelhança daqueles fanáticos que o criaram. Eles contrariam a própria bíblia quando pregam o ódio a tudo o que não vá de encontro ao estilo de vida deles. Está escrito em Malaquias: não por força nem violência, mas pelo espírito. Parabéns pelo texto.
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