Pai, afasta de mim este cálice
Luciano Fazio
Nos últimos dias, no Rio de Janeiro, o jovem congolês Moïses Kabagambe foi trucidado a pauladas e o Durval Teófilo, um trabalhador afrodescendente, foi morto a tiros por um sargento da Marinha que, com base na cor da pele da vítima, avaliou que seria um ladrão…
Em 5 de fevereiro, em Curitiba, um ato público contra essas mortes, iniciado na praça, terminou com a ocupação da igreja “Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”, um símbolo da população negra e de suas lutas, edificada no século XVIII por negros escravizados. Segundo relatos, um padre teria tentado sem sucesso impedir o ingresso dos manifestantes, mesmo essa sendo a “igreja dos pretos”. Em resposta, os manifestantes o teriam chamado de “fascista” e “racista”.
O ocorrido provocou protestos indignados na Câmara dos Vereadores e uma nota pública da Arquidiocese de Curitiba com a denúncia a “profanação injuriosa do templo”. A nota não menciona dano algum ao patrimônio, mas alega que a ocupação teria interrompido a celebração de uma missa. Já os organizadores do ato negam ter obstaculizado qualquer culto religioso e, por meio de filmagens do ato, mostraram que a igreja estava vazia na ocasião.
Ao que parece, os manifestantes foram pouco hábeis no trato com os padres da igreja. Lamentavelmente.
No entanto, nesse episódio, cabe discernir qual seja o problema principal e qual o secundário. O que mais importa é o posicionamento dos vários atores do episódio de Curitiba diante da recrudescência do racismo no país. Os manifestantes expressaram o repúdio à violência, se solidarizaram com as vítimas e pediram justiça. Já na nota do bispo de Curitiba, o problema foi o acesso dos manifestantes na igreja, rotulado como “comportamento desrespeitoso e grotesco”, pois a prioridade seria “salvaguardar a dignidade daquele Templo”, supostamente ferida pelos manifestantes. A nota menciona a necessidade de “políticas públicas com vistas a contemplar a igualdade dos direitos de todos”, mas não se solidariza com as vítimas da violência e não condena os atos de ódio e de racismo.
São evidentes as diferenças de posicionamento. De um lado, para os participantes do ato “vidas negras importam” e os assassinatos não são fatos isolados, mas revelam o racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. Do outro lado, os manifestantes são chamados de profanadores do templo e o ato deles é desqualificado, como a pedir que os movimentos sociais se calem no espaço religioso.
Defendo os protestos contra o racismo. Ainda, em face da opressão e do massacre de homens e mulheres, cujo clamor se levanta até Deus, é injustificada a pretensão de que o dia a dia rotineiro dos templos, a assim chamada “normalidade”, não sofra alterações, dando vez e voz à reação de todos, como diz a canção do Chico Buarque:
Pai, afasta de mim este cálice (cale-se):
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado.
Em Curitiba, os organizadores do ato que pediu justiça por Moïse e Durval e a Arquidiocese promovem conjuntamente uma “Missa e Ato pela Paz” para o sábado 12 de fevereiro, sinalizando a possível superação das controvérsias. Espero, no entanto, que o ocorrido não seja tratado sumariamente como “caso encerrado”, mas provoque mudanças profundas nas posturas e atitudes.
Notas
- CNBB, Rede Clamor Brasil e Redemir emitem nota sobre o assassinato do congolês Moïse Kabagambe
- Brasil, que matas o povo negro e oprimis sua gente, que vergonha! — Dom Zanoni Demetino Castro, Arcebispo de Feira de Santana
imagem em destaque: Arnaldo Ferrari — Construção com Triângulos,1964.
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