Um planeta que ferve e o David
João Carlos Pereira
O planeta Vênus não me interessa. Mas “O Nascimento de Vênus”, quadro que Botticelli pintou em 1483, me seduz por inteiro. A tela pertence ao acervo da Galeria Uffizi, de Florença, e é emocionante ficar diante dele. O David, de Miguelângelo, mora no Museu da Academia, pesa cinco toneladas e a turistada grama horas na fila para vê-lo. Eu gramei quase duas, na primeira vez em que lá estive. Gramaria a vida inteira para me colocar novamente diante de um deus feito por outro deus.
Vênus, o planeta, às vezes fica visível a olho nu e, esta semana, surgiu no noticiário porque os cientistas descobriram nele a presença de fosfina, gás propício à criação de uma bactéria. Logo, se pode haver bactéria, pode existir vida.
Dizem que lá é pior que o inferno. Será que perguntaram isso ao poeta Dante Alighieri ou ao próprio diabo? A televisão garante que, se um foguete se aproximar de sua superfície, derreterá como uma barra de chocolate exposta ao sol. Vênus é uma caldeira a céu aberto. Ferve dia a noite.
Essas coisas de planetas, estrelas, sistema solar, buracos negros deixam qualquer um doido. Por isso não me interesso por Vênus e por nada que não compreendo bem. E Mercúrio, o chamado Planeta Vermelho, o que é? O forno da pizzaria universal? A sede das siderúrgicas do universo? Por que razão Deus desenharia dois planetas em chamas, como o Anjo decaído, e aliviaria a nossa barra, na Terra? Será que somos dignos de uma paisagem tão deslumbrante com a que temos – e incendiamos criminosamente, como acontece agora, em várias partes do planeta – ou isso tudo é ficção?
Quem mora em Mercúrio e Vênus? Seriam seres terríveis, que precisam de purificação pelo fogo? Criaturas em chamas em busca de evolução? Minha inteligência é pequena para compreender as vontades de Deus. Muito menor que de a de Agostinho de Hipona, sequioso por entender a Santíssima Trindade, até que um Anjo o ajudou a cair na real, usando a imagem de uma criança cavando na praia um buraquinho, onde planejava depositar toda a água do mar.
Se a Terra é esse paraíso, por que Marte é aquele deserto? E o meu amado Saturno, com seus anéis protetores? Não! Isso não cabe na minha cabeça? Acho que tudo pode se explicar com o conceito de dimensões. Estamos distantes da verdade. Se o Sistema Solar é um nada na Via Láctea; se o Sol é uma estrelinha de 5ª. categoria no universo e a Terra não passa de um grão de areia, quem somos nós ?
Penso num monte de gente que se acha muito importante e jura possuir o poder nas mãos e dou risadas. Não somos absolutamente nada. Basta um coágulo solto nas veias para mostrar quem é que manda no pedaço.

Vênus é um mistério a decifrar. O mundo é um mistério a decifrar.
Enquanto a Terra gira, prefiro descer numa estação de trem pobrezinha, mas com personalidade, a desembarcar num grande aeroporto. Os aeroportos viraram o retrato do nada que somos. Todos miseravelmente iguais, com seus ridículos free shops, templos dos espíritos consumistas obcecados por grifes.
O “Nascimento de Vênus”, de Botticeli, é maior do que tudo isso.
Menos que o David, é claro.
Belém, 21 de setembro de 2020.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Sandro Botticelli — O Nascimento de Vênus, 1483. Galleria degli Uffizi, Florença.
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