A comida remosa e os saberes do povo
João Carlos Pereira
Falar sobre comida remosa é como mexer em casa de caba. Todo mundo tem uma opinião, um palpite, uma explicação, seja de natureza científica, seja oriunda do saber popular. Ou passou por um aperto, por se danar a comer o que não podia, ou por desdenhar do que é sério.
De Sérgio Wax, o querido Sérgio Wax, poeta, agora morando em Portugal e de quem recebi notícia recentemente, o que me deixou, diria Manoel Bandeira, com a alma embandeirada, explica que “remoso é vocábulo usado pelos marranos, cristãos novos, suposta o realmente hebraisantes, ou até mesmo por descendentes totalmente cristãos que conservam sem saber antigas tradições familiares, para justificar o fato de não comerem porco, peixe de pele, crustáceos e moluscos…”. Faz sentido 100%.
Iolanda Maués, citada na crônica anterior, lembrou de uma obstetra, que andava com a anotação, num caderninho, de tudo que era remoso. Nunca se soube que nenhuma das pacientes tenha tido complicações. Ela mesma jamais padeceu de problemas pós-operatórios, seguindo a cartilha.
Jussara Derengi, arquiteta e querida amiga, chegou de sua terra, o Rio Grande do Sul, e aqui se instalou para – graças a Deus – nunca mais voltar. Jussara é preciosa. Ao aportar, ouviu falar de coisa remosa e custou a entender o conceito. Camarão era remoso. Caranguejo, talvez. Galinha estava interditada, a menos se fosse a parte escura. Alérgica a camarão, pouco se dava se era remoso ou não.
Num dicionário antigo, Jussara encontrou a informação de que a idéia de remoso vem da época da Roma antiga, onde os médicos já falavam de alimentos que afetavam a cicatrização. Há a suposição de que a crença judaica tenha ajudado a dar pilha nesse conceito. Os alimentos “impuros” são remosos. O camarão, chamado de urubu do mar, porque se alimenta de seres mortos e apodrecidos, abre a relação. O porco, cancelado do cardápio (exceto para os que, diante de um leitão suculento, o rebatizam de carneiro, ou fingem estar se deliciando com cordeirinho), se mal cozido, era porta aberta para muitas doenças.
Num tempo sem geladeira ou falta de conservação adequada, era importante meter medo no povo, dizendo que certas comidas eram remosas. Até hoje não tem quem acredite que uma pessoa com febre não pode comer manga,porque fica doida? Ou que misturar manga com leite faz mal? Na cidade das mangueiras, essa talvez tenha sido a precaução para frear um pouco o consumo da fruta. Como e por que, pelo amor de Deus, não me perguntem. Como diz a Jussara, a mente humana é poderosa para se auto-sugestionar. E a do paraense, eu completo, foi treinada desde sempre com essa coisa de romosa.

Marília Guzzo também não se deixa influenciar, mas, pelo sim, pelo não, não facilita. O marido, Mario Guzzo, não crê em nada disso e, na juventude, até galinha de despacho comeu. E está vivinho da Silva. Comer refeição oferecida às entidades era prática comum na cidade. Os rapazes, em altas horas, vindos da farra, varados de fome, brocados, não se amedrontavam e, literalmente, raspavam o tacho. Eu não passo nem perto. Tenho profundo respeito pela ancestralidade e pela cultura africanas.
Vera Soares, professora, antiga e querida colega da Unama, prefere não se arriscar, assim como Nelly Mirian Rocha, companheira de longas conversas ao final do expediente, no Tribunal do Trabalho da 8ª. Região.
O poeta Milton Meira, que há tempos nos deve livro, se lembrou, por causa da crônica dos remosos, que possui, em sua biblioteca, os cinco volumes do “Caldas Aulete”. Trata-se de uma preciosidade, um dicionário ilustrado, da qual não separo, mesmo tendo o Google o Volpe, da Academia Brasileira de Letras, na tele do celular.
De Ana Angélica Mello, amiga modernista, um afeto de mais de 50 anos, recebo uma deliciosa provocaçãozinha. Diz ela que conhece um médico mineiro, criador de um novo conceito de remoso: “remoso é comida que vem do Remo”. O danado deve ser Paysandu só pode. O poeta Leonam Cruz Jr. é da mesma opinião, porque é Paysandu doente. Ana Angélica também faz uma observação muito sábia: “mano, se for assim, os doentes todos terão de ser vegetariano, porque carne também está cheia de colesterol”.
Meu primo e querido amigo Leonardo Lourenço é nutricionista e informa que, na Austrália, também existe o conceito de comida remosa. Impossível acreditar que carne de canguru seja considerado alimento remoso. Mas é. Minha idéia é que o bichinho entrou na lista para evitar que acabem com ele.
Maria Lúcia Almeida, bibliotecária aposentada da UFPa., não dá a menor bola para isso e apenas não come o que não gosta. Tânia Giestas, que lê estas crônicas em São Paulo, manda dizer que lá os médicos nem imaginam o que seja remoso, mas ela respeita. Ana Célia Bahia encerrou a discussão com classe: “é a sabedoria do povo”.
Amarílis Tupiassu a Lila, a nossa Lila, tem uma história-explicação sobre comida remosa que não me perdoaria nesta vida (nem na outra, caso exista), se reduzisse à minha simples palavra ou a recontasse do meu jeito. Ouro não se perde. Brilhante não corta ao meio. O texto da Lila como ouro e brilhantes juntos, formando um solitário. Seria também uma espécie de Torre da Marfim de que falava Alceu Amoroso Lima, a propósito da literatura de Clarice Lispector. Para ele, Clarice vivia uma trágica solidão em nossas letras, porque ninguém escrevia como ela e ela não escrevia como ninguém. Com a Lila se dá a mesma coisa. E tendo eu a voz da Lila, vou desperdiçar? O Domingos de que fala no texto é o doutor Domingos Silva, médico, cientista, homem raro.
Encontrava-me com coceiras insuportáveis, acima de tudo indiscretas, destituídas de qualquer senso de pudor; irrompiam a qualquer instante em partes corpóreas a impossíveis de serem contempladas com unhas, se possível, aduncas, em qualquer canto. Quando urdia o comichão, não tinha jeito, era disfarçar, escapulir á sorrelfa, meter-me em porto – droga, o famigerado corretor só admite seguro com maiúscula – as garras já em pronta ação.
Corri a Santa Casa com o tio Domingos. Depois de lentes, exames, entre gostosos colóquios sobre principalmente Eça, cujo craqueado literário titio amava, conversávamos, eu me coçava e depois ele chegava a declamar uns Antonio Nobre. A coisa foi; tio Domingos explicou a trama do mal, prescreveu isso e aquilo, instruiu e pediu que levasse uns dias sem chegar perto de alimentos como pirarucu, camarão, caranguejo etc e tal tu sabes. Evita. Encarecidamente. Mas por que, tio, devo evitar os remosos, então é verdade, não são meras abusões, justo, justo como dizem da esquenenvia? Da esquenencia não me atrevo a falar, mas ouve o porquê, escuta em exemplo simples, a verdade usual entre os simples, dizem as más línguas não eu. Vou ao xis da questão num exemplo. Come, exagera no caranguejo e esquece a casca no forno. Esquece por uns dias. Lembra, ou por outra, algo vai fazer lembrar. O fedor. A fedentina alarmante, vomitiva, impossível de suportar. Bastam poucos dias, três, pode ser. E correrás a despejar o terror até no inferno, a carga nauseante, nauseabunda.
Num outro dia comerás frango, esquecerás por dias a sobra, a ossada no exatíssimo mesmo forno. Três, quatro dias, cinco… e dias lá se vão. Claro que frango está interdito a saúde e ao paladar, podre, pode ser, jamais, porém, exalando o horror de podridão do caranguejo, quiçá da casca de camarão.
Sabe por quê? Pela potente carga de toxinas no que o sábio povo chama remoso. Com acerto. O baixo teor no frango e em alimentos serenos que o povo sabe identificar muito bem, os quais conhece, indica o molesto, pelo uso prático, daí a canja obrigatória à parida e ao convalescente das antigas, ambos em fuga a infecções. Morou na grandeza do saber prático-popular?
E, toque de tarol, para o que eu descobrir em consulta ao meu raro e adorado dicionário do Frei Domingos Vieira (5 v, 1871, 1874). Está lá. Reimoso é o que reima, tem reuma, agentes de infecção, no reuma, origem verbal assente no grego rheuma, de que nos advém, os vocábulos vinculados aos aterrorizantes reumatismos, chateação crucial muito mais nas prisquissimas eras, quando as curas, às vezes, muitas, confundidas e associadas a bruxarias, submetiam-se a custosos tempos de ensaio e erro.
Sabes, querido João, nunca mais esqueci do exemplo prático e convincente, todo tempo aí, na nossa cara: as cascas dos agudos remosos, em contraposição ao saudável, ao salutar frango esquecidos, os dois largados no forno do tio Domingos nas nossas saudosas conversações infecto-literárias, nada, nada remosas, muito, muito ilustrativo-saudosas.”
Domingo, em casa, o almoço foi arroz de camarão com lula. Pense num suplício, numa tentação, numa tortura. Nem sou assim tão doido por camarão, mas bastou dizer que é “proibido”, por causa do tal remoso, para me dar vontade de comer. Recém operado, primeira coisa que perguntei ao dentista foi sobre comida remosa. Waldener Ricardo Souza de Carvalho, que se tornou meu anjo protetor, junto com Mariana Bisi e Adonis Arouck, me olhou meio atravessado e disse que isso ia da crença de cada um. E terminou: “vais morrer se não comeres camarão durante alguns dias?”.
De fato, não morri. A cicatrização da cirurgia ocorreu como ele desejava. Talvez, se tivesse me acabado no camarão, capaz que nem esta crônica tivesse escrito.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Wellington Virgolino (1929-1988) — Gula, s/d. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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