O nome de Eneida em todo canto

João Carlos Pereira

Não posso terminar esta série de crônicas sobre Eneida, sem contar a quantidade de homenagens que ela recebeu. Que seu nome está escrito em meu coração, todos já sabem, mas ele também aparece no muro de uma escola estadual no município de Ananindeua.

No começo da avenida Pedro Miranda, que, por minha vontade, passaria a ter o seu nome, há um recanto mimosinho chamado “Praça Eneida”. Ela andou meio abandonada, mas agora está em obras, ganhando repaginação. Na direção da Unama foi colocado um totem de cimento, parte de um projeto da Universidade da Amazônia chamado de “Belém da Memória”. Grudado à placa e protegida por um vidro havia uma lâmina de metal, na qual estava gravado um texto do homenageado ou de alguém que escreveu sobre ele. Um desenho de José Fernandes, o nosso Zoca, um dos melhores artistas desta terra, ilustrava a palavra. Na Praça Eneida, foi escolhida uma crônica que preparei há muitos anos, “A Mangueira de Eneida”. Como muitos totens foram roubados, por gente que não consegue partilhar a beleza, ou por vandalismo mesmo, não sei ainda existe. Foi minha primeira declaração pública de amor pela escritora.

O texto da placa era este. Talvez tenha mais de 20 anos e foi publicado ou no jornalzinho da Unama, ou em O Liberal. Nunca pesei que chegaria às redes sociais, mas chegou.

As Mangueiras de Eneida

…Estranho comemorar aniversário de morte! Aliás é estranho chamar de aniversário, palavra que tem gosto de festa e de presente, para a data em que uma pessoa deixou este mundo. Mais incompreensível é assinalar o aniversário de morte de Eneida, uma pessoa tão cheia de vida e força, que morreu reclamando da morte, praguejando.
“Morro, mas morro com raiva”.

Eneida de Morais era apenas Eneida. Quem consegue esquecê-la? Não a conheci pessoalmente, mas sua literatura me fez cativo dessa conterrânea, de quem nunca ouvi alguém dizer nada que desonrasse seu nome. Era um exemplo de honestidade e de brios, me contam seus amigos. Era uma pessoa que jamais topou chantagem ou coisa parecida. Viveu numa retidão de fazer inveja. Tão alegre, tão carnavalescamente alegre, que era o próprio retrato do carnaval brasileiro. Sua ideologia era, mal comparada, uma religião. Viveu, lutou, foi para cadeia por causa de suas idéias. Se afastou um milímetro delas por causa disso?

Tudo o que ouço sobre Eneida me comove. Mas só posso falar de sua literatura, que me foi apresentada pelo professor José Guilherme Castro, no tempo da Universidade. Desde essa época, suas crônicas passaram a ser uma de minhas leituras favoritas. Com que prazer releio textos que não envelheceram, contrariando as teorias de que esse gênero literário é para ser lido e pronto!

E quem tanto amou Belém, o que recebeu dela? Uma praça em seu bairro favorito, que é metade praça, metade estacionamento? Uma placa com nome de rua, de avenida? Um busto talvez? Não sei se ela gostaria dessas homenagens, mas sei o que ela tanto quis: uma mangueira por cima de sua sepultura, no Santa Isabel. Quem disse que pode? Eneida foi enterrada bem próxima ao gradil que dá para a José Bonifácio. Uma árvore grande como a mangueira derrubaria o muro e arrebentaria as sepulturas do lado.

O que fazer para atender a um pedido tão paraense? Acho que conservar as mangueiras que cobrem a cidade é a solução. Eneida não suportaria ver essas árvores tão maltratadas, tão esquecidas, tão cheias de erva-de-passarinho”.

Em 1994, a Universidade Federal do Pará reuniu sob sua liderança pesquisadoras e associadas, docentes, discentes, técnicos-administrativos, pesquisadores e profissionais da UFPA e de outras instituições públicas e privadas, dos movimentos de mulheres interessados na temática mulher e gênero, criou o Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes”. O propósito era refletir sobre os temas que sinalizavam para a valorização dos Direitos Humanos. As professoras-doutoras Maria Luzia Miranda Álvares e Eunice Ferreira dos Santos coordenaram a iniciativa, emprestando o brilho de sua inteligência a uma causa que foi o motivo da vida de Eneida.

Há alguns dias, encontrei na internet o vídeo de um rapaz anunciando a formação do Clube de Leitura “Eneida de Moraes”. O objetivo era difundir o gosto pela leitura, a partir do empréstimo de livros. Num trecho , o apresentador faz referência ao nome de uma escritora do Distrito Federal, também chamada Eneida. Era Eneida de Queiroz. A homenagem do primeiro nome era ao da nossa Eneida.

Sei que a professora Josebel Fares, da Universidade do Estado, muito batalhou para conseguir a publicação de um dos livros de Eneida pela editora da Uepa. Antes da pandemia, ela corria atrás de um dos parentes da autora para conseguir autorização. Espero que tenha tido sucesso. Bel Fares é muito apaixonada por Eneida.

Fafá de Belém, que ama nossa terra tanto quanto Eneida amava, me disse que não sabia de onde, nem por onde, que a escritora era sua parente. Dona Eneida, mãe da cantora, recebeu esse nome por causa da ligação familiar. Com certeza tem a ver, porque, assim como a cronista, Fafá é a expressão da alegria e da liberdade, tal como em sua tia distante.

Como paixão pouca é bobagem, fui buscar na internet alguns informações curiosas sobre a origem da palavra Eneida. Em latim, se escrevia Aeneis e Virgílio escreveu um poema épico, no século I, antes de Cristo, para contar a saga de Eneias, daí o nome “Eneida”, um troiano que foi salvo dos gregos, em Troia, e viajou, como um errante, pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. O objetivo desse poema era rivalizar com e, quem sabe, superar Homero, para cantar a grandeza de César Augusto. Como se vê, foi um poema feito sob encomenda que, como se diria hoje, saiu bem melhor que a própria encomenda, por conta de sua beleza. A “Eneida” é considerado o poema mais perfeito de todos os tempos. Em sua primeira metade, falando de viagens, o plano é superar a “Odisseia”, e, a segunda tenta ultrapassar a “Ilíada”, em seu aspecto bélico, ambas de Homero.

Das redes sociais trago a informação de que Eneida foi um nome muito popular entre nos anos 60 e 70, com nada menos do que 1.890 registros em todo o Brasil. Depois caiu em desuso. Virou esquecimento. Saiu de moda. Consta que, atualmente, não há mais do que 500 Eneidas. Se é verdade, não posso garantir. A pesquisa assegura que somente 0.0038% das brasileiras possui esse nome e que está na posição de número 1525 entre os preferidos do Brasil. Ou seja, antes dele há 1.524 opções de escolha. O Rio Grande do Sul é o Estado onde há mais Eneidas registradas. Seguem São Paulo, Minas, Rio, Bahia e o Pará, a terra da nossa Eneida, em sexto honroso (?) lugar.

Quando minha filha mais nova estava para nascer, o nome da criança foi motivo de grandes discussões em casa. Eu quis, de cara, Eneida. A escolha foi rejeitada na hora, porque, diziam as irmãs, “era nome de velho”. Sugeri Fayga, por causa de minha querida Fayga Ostrower. Apanhei de novo. A alegação era que, no colégio, Fayga ia logo virar faca. Talvez estivessem certas. Minha terceira opção foi Helena. Nova derrota. “Helena é um nome triste”, alegaram. No momento em Mariana propôs Beatriz, um silêncio se instalou na cozinha, onde o tema era debatido. Todo mundo gostou. Nasceu Beatriz, mas a alma, a coragem, a liberdade e a dignidade são próprias de uma Eneida. Depois de tantas peias, é isso que me consola.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Fayga Ostrower — sem título, 1967. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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