Pequenos anjos vão à missa

Yvette Vieira Pinto de Almeida

Três episódios absolutamente verídicos

I

A mãe rezava, completamente abstraída de tudo, mas os negros olhos vivos da menininha não perdiam um só movimento do celebrante. Arregalaram-se, interessadíssimos, quando ele ergueu o fascinante objeto redondo, prateado à luz do sol matutino, e disse:

— Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!
Arregalaram-se ainda mais quando o padre, reverente, pôs a Hóstia na boca.
E a voz infantil, nítida, pura, curiosa, soou, natural, pela igreja toda:

— Que é isso, hein, mãe?
Nenhuma resposta.

— Mãe, que é?
Nada. A vozinha insistia, premente, um pouco queixosa:
— Mãe, não sei o que é isso!
A mãe, sempre calada, pegou ao colo aquele louro amontoado de babados, de onde emergiam róseas gordurinhas, covinhas e curvinhas, e dirigiu-se à fila da comunhão.
Os vivos olhos negros nada perdiam. Desciam das bocas que comungavam aos pés que se arrastavam, subiam às mãos do sacerdote…

— O Corpo de Cristo!
— Amém.
No silêncio de depois da comunhão, de repente, a mesma vozinha, doce, desanimada, triste, num suspiro, esparramou-se suavemente no ar:

— Ah! E eu não comi nada!


II

Será que a Missa ia chegar ao fim sem que ninguém prestasse atenção nele? Será que ninguém ia ver suas calças compridas amarelas, as primeiras que ele usava? (Era um menino muito pequeno ainda, encantador no seu ar de miniatura de homem.)
Iria ele ficar – até quando, meu Deus! – assim largado, como se nem estivesse ali? Por que sua mãe quisera que ele fosse, lindo de morrer na roupa nova, se ninguém brincava com ele, ninguém lhe ensinava aquele jogo estranho?
Ele bem que observava, mas não entendia: de repente, ao mesmo tempo, todos se levantavam, todos falavam, todos se ajoelhavam…
Cantavam músicas que ele nunca ouvira em casa, quando a Babá ligava o rádio. Agora mesmo estavam cantando uma que lhe pareceu bonita:

O Senhor fez em mim maravilhas,
Santo é seu nome!

A moça ao seu lado virava a cabeça para trás e fechava os olhos, cantando:

Santo é seu nome!
A senhora gorda, com o terço de cristal tilintando entre os dedos:

Santo é seu nome!
O moço de calça Lee e bolsinha preta pendurada ao pulso:

Santo é seu nome!
Quando todos acabaram, o menininho tomou coragem. Respirou fundo. Enfiou ambas as mãos, decididamente, nos bolsos da calcinha nova e falou, alto e bom som:
— Pois o MEU nome é Dudu!


III

Era domingo. A senhora de roupa escura e rosto pálido, sentada em seu lugar, na igreja, à espera da Missa das oito da noite, acompanhou com os olhos o menininho que acabava de entrar com sua mãe, sentando-se no banco em frente. Ah, aquele garoto não tinha mais de cinco palmos de altura – cinco palmos de encanto e distinção.

“Ele se parece com alguém que eu conheço”, pensou a senhora.
Mas quem? Claro: ele lhe lembrava o Pequeno Lorde Fauntleroy, herói do livro que fizera as delícias de sua infância…
Não. Pensando melhor, ele se parecia em tudo com o filhinho com que ela sonhara sempre e não tivera nunca.
Olhando o pequeno rosto inteligente e alerta, ela deixou que novamente lhe aflorasse à memória o verso de Manoel Bandeira, há muito semi-esquecido:

Gosto muito de crianças,
Não tive um filho de meu.
Um filho! Não foi de jeito.
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu…

Estava quase idosa, agora. Já não era tempo de sonhar com filhos. Aquele menino se parecia, sim, com o netinho que ela nunca teria.
Olhou-o sem amargura, feliz na sua conformação. Seria uma velha senhora solitária, mas não se revoltava. Aceitava sua sorte. Esperava que Deus estivesse contente com ela… Estaria?
Mas ali vinha o Padre para celebrar a Missa. Ela esqueceu suas divagações e acompanhou o Santo Sacrifício.
Foi quando o Sacerdote disse “saudai-vos uns aos outros” que tudo aconteceu. Ela virou-se para a esquerda, mas não havia a quem saudar. A pessoa à sua direita estava cumprimentando um senhor; a pessoa atrás dela também cumprimentava outra.
Sentiu-se um pouco perdida, quando alguém a puxou delicadamente pelo vestido, e logo em seguida uma pequena mão segurou a sua. Seus olhos e os do menino se encontraram.
Os dele, vivos e expressivos, olharam tão fundo dentro dos dela que uma corrente de extraordinária ternura e compreensão passou entre eles.

Então o menino falou, absurdamente, àquela hora da noite, com seu arzinho compenetrado e sua voz educada:

— Bom dia para você!
Sim, Deus estava contente com ela. Agora ela sabia. Seu coração encheu-se, também, absurdamente, de alegria e amor.


Yvette Vieira Pinto de Almeida nasceu em Belém do Pará, no dia 19 de março de 1925. Veio para Brasília no ano de 1962, e aqui trabalhou, por toda a vida, no departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados. Converteu-se ao catolicismo em 1976 e graduou-se em Teologia em 1982, tendo dedicado sua vida, desde então, ao trabalho do Reino. Escritora dos fatos encantadores da vida desde os tempos de criança…

Imagem: Emile Schuffenecker — Les enfants au parc Montsouris, 1887. Musée d’Orsay.

Crônicas de João Carlos Pereira

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Amei. Que leveza, que delicadeza de escrita (e de alma, com certeza)! Que venham outros textos dos antigos escritos da dona Yvette! 🤗
    Calhou bem para esta fria manhã de domingo – o Dia dos Pais.

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