Metáfora messiânica do cavalo e jumento
Cyril Suresh, SJ
A fé bíblica nos ensina que Deus se manifesta na sua criação, contudo Ele está além dela como criador de tudo. Por isso, o homem bíblico nunca desiste de buscar e seguir o caminho de Deus que se revela nos acontecimentos do mundo. Para este fim, a Igreja torna-se mãe e mestra (Mater et Magistra). No tempo de crise, como agora da pandemia de Covid-19, o amparo da Igreja é muito especial como nossa mãe e nossa mestra ao mesmo tempo. Ela não cansa de educar seu povo a buscar Deus e às vezes maternalmente ela não seja compreendida em seu papel de educar magistralmente seus filhinhos em prol de promover paz, amor e reconciliação.
A — Animais com apelo sério
Em tempos difíceis, o homem necessita de sinais visíveis, imagens simples, símbolos vivos, metáforas inspiradoras para reaprender a sabedoria e recuperar sua força. Viver é aprender e vice-versa. Nessa aprendizagem permanente o homem vai buscando perpetuamente sua vocação e se torna o que é a imagem viva, ungida ou messiânica de Deus. Pois, Deus cria o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). A escola bíblica da Igreja, como mestra sábia e discípula fiel, preocupa-se com seu povo sofrido e procura junto dele o melhor caminho da vida, da saúde e da salvação de Deus.
Existem seres animados e inanimados, micróbios e macróbios, bacterianos e virulentos, e tantos outros no mundo. O que podemos aprender de um animal, como cavalo ou jumento, neste tempo de crise pandêmica do mundo? Até essa pregunta faz-nos sorrir. A maioria do povo possivelmente gostaria de ouvir até sobre o cavalo, mas nada sobre jumento. Mesmo a palavra como “jumento ou burro” é identificada idiomaticamente com estupidez, idiotice ou bobagem. Como é possível pensar que cavalo e jumento poderiam nos ensinar alguma sabedoria profunda? O que um animal tão simples teria a ver com a figura messiânica na Bíblia? Assim como qualquer outro animal do mundo, cavalo e jumento são animais ordinários que poderiam nos revelar de modo extraordinário — como metáfora — o caráter ético e o atributo messiânico. Com coração aberto, podemos adentrar no desenvolvimento dessa reflexão curiosa.
Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros!
George Orwell (1903-1950)
B — Animal do Rebanho

Essa ordem linear pouco importa diante da riqueza simbólica e espiritual de cada um desses animais. Na política agrária do José de Egito, até o pão foi vendido em troca destes rebanhos (Gn 47,16). Na cultura moderna, o jumento é muitas vezes malvisto e até o nome dele é usado como palavra de xingamento e de fingimento das pessoas. Não obstante, na cultura semítica, principalmente na região onde os acontecimentos bíblicos foram registrados, o jumento era um animal muito bem-visto e útil, como meio de trabalho e veiculo de transporte para os pobres, enquanto o cavalo era geralmente para os ricos e poderosos.
Deus abençoou homem e mulher dizendo-lhes:
Sejam fecundos, multiplicam-se, encham e submetem a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra.
Gn 1,28
Aqui o ato de dominar é sinônimo de cuidar responsavelmente da casa comum e tudo o que existe nela. A missão evangelizadora de Deus educa Pedro numa visão registrada nos Atos dos Apóstolos. Pedro entrou em êxtase e viu o céu aberto, uma grande toalha que descia para a terra. Dentro dela havia todo tipo de quadrúpedes e também répteis da terra e aves do céu. E uma voz lhe disse: “não chame de impuro o que Deus purificou” (At 10,11-16).
Deus viu tudo o que havia feito na criação, e era muito bom.
Gn 1,31
C — Atitude de associação
Cavalos e carros são associados comumente à força imperial e militar do rei. Tal força é uma vantagem para alguns privilegiados e uma opressão aos empobrecidos. Por exemplo, Deus YHWH atirou no mar carros e cavalos que estavam perseguindo os filhos de Israel (Ex 15,1). O profeta Eliseu viu o exército do rei de Aram que estava em guerra contra Israel cercando com cavalos e carros (2Rs 6,15). Os cavalos de Salomão eram importados do Egito (1Rs 10,28; 2Cr 1,16; Et 6, 8.11).
Jumento é símbolo de trabalho árduo. Também ele é um instrumento para praticar justiça apaziguadora diante dos inimigos. Por exemplo, Issacar é um jumento robusto, deitado entre dois muros (Gn 49,14). Se Israel encontrar extraviados os jumentos ou boi do seu inimigo, deve levá-los ao dono. Se Israel encontrar o jumento do seu adversário caído debaixo da carga, não pode se desviar, mas ajudar a erguê-lo (Ex 23,4-5). Assim, esse animal oferece oportunidade para se esquecer da inimizade entre dois grupos, reaproximando-os com amor universal.
Segundo o salmista, Deus é o nosso Conselheiro (Sl 32,8). Ele adverte o seu ouvinte obediente, “não seja como o cavalo e o jumento que desconhecem rédea e freio (Sl 32,9); o cavalo é ilusão e o seu vigor todo não ajuda” (Sl 33,17; 147,10). Por isso, ai daquele que procura apoio nos cavalos (Is 31,1). Existem possibilidades de ter escravos a cavalo como se fossem príncipes e príncipes a pé como se fossem escravos (Ec 10,7). Deus criador é o Senhor da vida e dos animais (Jó 38-40). Só Ele pode dar força aos cavalos (Jó 39, 19). O cavalo se prepara para o dia da batalha, mas a vitória vem de Deus YHWH (Pr 21,31). Sansão apoderado pelo espírito de Deus YHWH matou mil filisteus com uma queixada de jumento (Jz 15,14-16). Deus é justo e felizes são aqueles que confiam Nele (Is 30,18).
O cavalo em hebraico é סוּס (sûs). Coincidentemente, a terminação fonética do nome “Jesus” em português possui um sûs (סוּס) no final, Je-sus.
Vi um cavalo branco. O que estava montado nele tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa, e ele saiu vencendo e para completar a sua vitória.
Ap 6,2
O cavaleiro deste cavalo (sûs) branco é Fiel Verdadeiro (Ap 19,11). Ele é chamado pelo titulo cristológico de Jesus de “Palavra de Deus” (Ap 19,13; Jo 1,14) como Rei dos reis e Senhor dos senhores (Ap 19,16).
D — Atributo de Messias
Na visão profética da Bíblia, o carro de fogo e cavalos de fogo destacam o poder onipotente de Deus. Cavalos do Senhor são mais ligeiros que águias (Jr 4,13). Elias subiu ao céu de carro de fogo no redemoinho (2Rs 2,1-13). Cavalos e carros de fogo circundaram Eliseu sobre a montanha de confronto (2Rs 6,17). Na visão do Zacarias e no Apocalipse aparecem os cavalos vermelhos, pretos, brancos e malhados (Zc 6,2-3; Ap 6,2-8; 19,11).
Abraão se levantou cedo, preparou o jumento, e levou consigo dois servos e seu filho Isaac para oferecer o holocausto a Deus (Gn 22,1-18). O jumento foi um meio de transporte do caminho no qual Deus tira todas as seguranças de Abraão. É um processo de subir a montanha de obstáculos, crises, autossuficiência, e chegar perto de Deus. A confusão e a dificuldade no caminho não podem impedir o cumprimento da promessa vital de Deus.
Deus se manifestou a Balaão por seu prazer em abençoar Israel (Nm 22-24). Neste relato da revelação de Deus, Balaão se monta em cima de uma jumenta e segue seu caminho. De repente, ele espanca três vezes a sua jumenta por ter se desviado aparentemente da estrada. Na verdade ela não lhe desvia de nada. Ela é mais focada que ele. Ela apenas afasta da estrada por respeito, vendo diante dela o Anjo do Senhor. Ela não pode bloquear o caminho nem encarar o Anjo. Antes mesmo de Balaão, ela vê bem, o anjo do Senhor Deus com a espada desembainhada na mão (Nm 22, 23.25. 27.33). Os Evangelhos apresentam Jesus de Nazaré como Rei Messias que foi montado em cima de jumento e entrou solenemente em Jerusalém na véspera da sua paixão (Mt 21,1-11; Mc 11,1-11; Lc 19,29-36; Jo 12, 12-15). Tal evento é liturgicamente comemorado no Domingo de Ramos que abre a semana santa. A proclamação deste evento com a doxologia “Hosana ao Filho de Davi, o profeta Jesus de Nazaré” é um cúmulo simbólico na vocação de Jesus que aponta para Jerusalém celeste (Hb 12,12). No passado, o rei Davi foi o servo escolhido e a Jerusalém cidade escolhida (1Rs 11,13.32).
Carregando Balaão na sua costa, a Jumenta enxerga o Anjo de Deus da salvação no caminho; carregando Isaac, o filho de Abraão, o jumento vai subir à montanha do holocausto no Antigo Testamento. No Novo Testamento, o Rei montado em cima da jumenta (Mt 21,5) foi Jesus que vai subir o monte Calvário a fim de oferecer o novo e eterno holocausto. Ele é o Deus Salvador e Messias, crucificado e ressuscitado, exaltado e glorificado.
Por um lado, algumas virtudes essenciais semelhantemente de um jumento, como por exemplo, mansidão, misericórdia, piedade, paciência, compaixão, santidade, humildade, esplendor, louvor e tantos outros que podem ser atribuídos também à pessoa de Jesus que se manifestou na sua vida de missão como Messias, isto quer dizer o Ungido. E por outro lado, alguns caraterísticos essenciais semelhantemente de um cavalo, como por exemplo, zelo, poder, coragem, valência, diligência, aventurança, nobreza, combate, confiança e outros que podem ser atribuídos também ao Messias. Pois, a vida ungida com maturidade, sabedoria, intimidade de Deus necessariamente produz essas qualidades ou atributos de Deus.
E — Aprendizagem do discipulado
A violência brutal sempre afasta o povo na sua fidelidade com Deus. Na cultura de hospitalidade, a Mãe Igreja quer educar o seu povo na acolhida e no discipulado cristão para reconhecer a existência de multiculturalidade e para promover a convivência de interculturalidade. Na escola de aprendizagem cristã, silenciar-se é uma formação importante. Ela pode ser comparada com o ato de colocar freio na boca dos cavalos para que nos obedeçam (Tg 3,3). O povo de Deus deve aprender conhecer o seu Senhor até no tempo de tempestade, porque segundo o profeta Isaías, até o jumento ou boi conhece o seu dono e sua manjedoura, mas Israel, o povo de Deus ainda não o conhece (Is 1,3).
Ao pé da letra, o termo discípulo tem a ver com ser instruído, disciplinado, castigado, formado, purificado, açoitado ao fim de aprender o caminho certo. Cavalo e jumento que reconhecem seu dono foram disciplinados até com espancamento e açoitamento. Na tradição bíblica, um pai disciplina seu filho com severidade. Deus educava Israel como o homem educa o próprio filho (Dt 8,5). O pai corrija seu filho, que ele o deixará tranquilo e lhe trará alegrias (Pr 29,17). Na educação social e cívica, corrigir com vara foi permitido no passado (Pr 23,13.14). Relho para o cavalo, freio para o jumento e vara para as costas dos indisciplinados são importantes (Pr 26,3)
Jesus de Nazaré se entregou completamente a Deus-Pai para ser educado e instruído por Ele. E tentações, pobreza, sofrimento, cansaço, sede, fome e trabalho duro confrontaram Jesus e nada foi poupado para ele. Com o zelo do cavalo, ele proclamou a palavra de Deus. Com bravura, ele curou os doentes até no dia de Sábado. Com a experiência do trabalho duro, como a de um jumento, Jesus formou incansavelmente os discípulos e serviu o povo. Jesus e os discípulos não tinham tempo nem para comer (Mc 6,31). Serviço é o principal motivo na criação do cavalo e do jumento. Também Jesus nunca esqueceu sua vocação de serviço por amor:
O Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos.
Mt 20,28
Como um jumento que é espancado enquanto carrega carga pesada, Jesus também foi flagelado enquanto carregar cruz pesada. No seu caminho ao calvário, Jesus caiu do cavalo, quer dizer, frustrou-se imensamente e sentiu dor de burro, isto é, intensamente sentir dor visceral. Assim, Jesus é caminho, verdade e vida (Jo 14,6). Os discípulos devem seguir o mesmo exemplo de Jesus (Jo 13,15).
F — Exemplo de Santo Inácio
A Autobiografia de santo Inácio mostra o papel fascinante do cavaleiro de Pamplona. No castelo de Loyola, Inácio tinha familiaridade de montar no cavalo e de aventurar no combate como soldado. Depois de ter interpelado pela Vita Christi e pela Flos Santorum, Inácio como peregrino foi cavalgando uma mula (jumento) até um santuário dedicado à Virgem, Nossa Senhora de Aránzazu e depois até ao altar de Nossa Senhora de Monserrate. Ali ele determinou deixar as suas vestes e vestir-se as armas de Cristo (Autobiografia, 13-18).
Neste trecho da vida de Santo Inácio, um acontecimento foi significativo embora simples. O peregrino Inácio no seu caminho à Igreja de Nossa Senhora de Monserrate, encontrou com um mouro (não Cristão). Os dois começaram a conversar sobre a Virgindade da Nossa Senhora. O mouro nunca acreditou na Virgindade e nem tinha abertura para entender tal assunto importante. Inácio ficou descontente. Ele se sentiu obrigado a defender a honra de Nossa Senhora. Empolgou-se chamar a atenção do mouro com ênfase para que ele entenda bem a Virgindade. Neste momento, ele queria tirar o cavalo da chuva! Entretanto o mouro descontinuou com Inácio e prosseguiu seu caminho acelerando os passos do seu jumento. Inácio perseverou no seu desejo de combater com o mouro no mesmo caminho. Providencialmente, o desejo ardente de Inácio foi temperado pelo deslocamento do seu jumento.
…e assim depois de cansado de examinar o que seria bom fazer, Inácio resolveu deixar ir o jumento (a mula) com a rédea solta até ao lugar onde se dividiam os caminhos. E que se o jumento fosse pelo caminho da vila, ele buscaria o mouro (não cristão) e lhe daria punhaladas; e se não fosse em direção à vila, mas pelo caminho real (que levou para o altar de Nossa Senhora de Monserrate onde vai oferecer, depois de três dias de confissão geral por escrito, a espada e o punhal como sinal de abnegação total na véspera da festa de Anunciação, 25 de Março de 1522), não lhe faria nada.
Autobiografia, 16
Se santo Inácio fosse persistido no caminho da vila para discutir com o mouro descrente o dogma da Virgindade, no caso desistir possivelmente apunhalando-o no caminho, certamente o corpo da Companhia de Jesus (Jesuítas), não teria nascido ao serviço da Igreja! Graças a Deus que o jumento de Inácio, assim como o do Balaão, tomou o caminho real de Deus afastando uma suposta violência inusitada de morte iminente. Sem dúvida, o jumento na gratuidade causou-lhe um desencontro com o mouro incrédulo e, ao mesmo tempo, um encontro irreversível com a Virgem Maria e com Nosso Senhor.
O caminho de diálogo e de reconciliação com outros é evidente na narrativa bíblica e no relato biográfico de santo Inácio. O encontro pessoal e comunitário com Cristo através da metáfora messiânica do “cavalo e jumento” é extremamente necessário para transformação de si em tempos da crise. Cavalo e jumento são apenas imagens teológicas complementares que se entrecruzam no seguimento Cristão. Seus apelos poderiam ajudar os discípulos a escutar melhor a voz de Jesus que precisa cair em nossos ouvidos.
Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem o meu jugo e aprendem de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.
Mt 11,28-30
Cyril Suresh Periyasamy é padre jesuíta, vigário da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em João Pessoa (PB). Ensina Sagradas Escrituras no Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Nasceu na Índia, onde graduou-se em matemática e fez pós-graduação em filosofia. No Brasil, graduou-se em teologia na Faculdade dos Jesuítas de Belo Horizonte, onde fez mestrado em teologia bíblica. [saiba mais]
Imagem: Pedro de Orrente — La vuelta al aprisco, séc. XVII. © Museo Nacional del Prado
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.