Bené de muitas memórias e de eterno carinho
João Carlos Pereira
A crônica de hoje deveria ser sobre Ruy Meira. Ela já está escrita, mas, como o plano de publicação contempla apenas segundas, quartas e sextas, porque nos outros dias me dedico a um projeto do qual, em muito breve, darei notícia, guardei-a para esta segunda, seis de julho. A questão, porém, é que a repercussão do texto sobre Benedicto Mello foi tão grande, que julguei acertado, considerando a importância do Bené, preparar uma nova crônica, contando um pouco da experiência que outras pessoas viveram ao seu lado. Sendo assim, reparto um pouco mais o pão da beleza e da humanidade luminosa desse grande homem.
Da amiga Célia Medina Cavalcante recebi este texto: “Crônica linda. Benedicto Mello era tudo isso. Você o descreveu muito bem. Conheci Bené nos anos sessenta, foi meu contemporâneo na Faculdade de Direito. Anos depois, ele foi contratado pelo SESC/SENAC , onde eu trabalhava, para fazer um estande que foi montado no antigo Largo de Nazaré. Estreitamos a amizade Foi maravilhoso. Conversávamos diariamente. Bem , sempre quis ter um quadro dele, mas nunca consegui. Até que fizeram aquela exposição no TRT e eu realizei meu sonho de ter um quadro dele, que até hoje está na minha sala”.
Adilson e Christine Serrão escreveram dos Estados Unidos, onde residem, para contar dos tempos em que foram vizinhos, no Edifício “D. Carlos”, o primeiro exemplo de arquitetura modernista da cidade, projetado por Camilo Porto de Oliveira. Bené, dona Maria Helena e os filhos moravam no terceiro andar. Chris e Adilson, no segundo. A proximidade transformou o lugar num pólo cultural. Estavam sempre juntos, realizam saraus e, não raro, eram as primeiras pessoas a conhecer os novos trabalhos do artista.
O apartamento do “D. Carlos” foi, por quarenta anos, a casa do Bené. Desses, 36 na condição de inquilino. Quando o prédio foi oferecido ao Banco do Estado para honrar uma dívida do proprietário, os locatários tiveram prioridade na compra das unidades que ocupavam. Mas cadê o dinheiro? Sérgio Mello, o filho-xerox-em-tudo, pegou uma série de aquarelas, esboços para uma nova exposição, colocou-as debaixo do braço e ofereceu-as a pessoas que adoravam a pintura do Bené. Em uma semana, tudo havia sido vendido. Os quadros foram entregues na data prometida e a exposição nunca aconteceu. Nesse caso, os felizes compradores levaram enormes obras pintadas a óleo e uma aquarela. O apartamento foi comprado e a família ainda morou lá por mais quatro anos.
Dessa época feliz, Sérgio lembra que, assim que os Serrão se mudaram, o imóvel foi ocupado pela pianista e professora Dóris Azevedo. Muitas vezes, os quadros foram preparados ao som do piano de uma das mais queridas profissionais da música, em Belém. A professora Dóris tocava, sem saber que, de suas mãos, subia um ritmo que direcionava as mãos de Benedicto Mello.
Do terceiro andar do edifício era possível avistar o Reduto inteiro. O bairro operário, com suas fábricas, sua gente humilde e a paisagem aberta da baía do Guajará formavam um cenário inspirador para o trabalho do Bené, que transformava sua sala em ateliê. Os mais belos painéis que preparou para Belém foram fetios naquele espaço. Ao final de cada quadro, o piso da sala ficava de tal modo coberto de tinta, que era preciso raspá-lo e aplicar uma nova camada de sinteco. Quantas vezes foi necessário fazer o reparo só é possível saber, contando a quantidade de painéis que produziu.
Regina Meira mandou um zap, ao qual anexou a foto do retrato que ele, Bené, pintou de seu pai, Augusto Meira, no qual se veem uma ampulheta, simbolizando a vida, as teclas de um piano e livros, alegorias da música e da literatura, grandes paixões daquele que foi “o namorado da cidade”.

Este é o quadro.
Quem não conheceu o dr. Augusto pode ter certeza de que ele era exatamente como está na tela.
Kleber Vieira o chamou de “excepcional artista”. Ana Célia Bahia contou que tem um “pequenino” ao lado de sua cama, cujos traços, compondo o quase abstrato, lhe permitem ver diferentes paisagens. Maria Fernanda Pinheiro, a cônsul de Portugal entre nós, ficou encantada com sua pintura até então desconhecida. Francisco Alberto Rocha lembrou que foram colegas, na Sudam, e sugeriu que eu escrevesse sobre João Pinto. O “Pintinho” está na lista, na qual aparecem pessoas queridas. como D. Vicente Zico, Lana, Isaac Soares, Didi Martins, entre outros muitos que merecem ter a memória, de alguma forma, recuperada.
Bendicto Mello deixou dois trabalhos inacabados e os entregou ao filho Sérgio. Um deles se chama “cara metade” e mostra o seu rosto fundido ao de D. Maria Helena, a grande e querida companheira de toda a vida.
Quando o papa João Paulo II esteve em Belém, foi o Bené, ou melhor, o Benedicto Mello, na condição de Chefe do Cerimonial do Estado, quem apresentou o romano pontífice, hoje santo da igreja católica, às autoridades locais, ainda no aeroporto. Dona Marilda Nunes, na época primeira-dama pela segunda vez, tem, em sua sala, uma foto da acontecimento histórico.
O Bené, o querido Bené, é um rio de histórias. Sua vida, plena de emoções, merece uma biografia. Se cada amigo que conviveu com ele preparasse uma página de memória, teríamos mais do que um volume e tanto. Seria um belo manual de vida.
P.S. Não por acaso, nesta quarta-feira, depois de amanhã, a cidade haverá de lembrar dos 40 anos da visita de São João Paulo II a Belém. Eu preparei um texto, que já está no primeiro volume da coleção que elaboro sobre o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, cujo título é “O Santo e a Santa”, no qual conto todos os passos do João de Deus, nas horas em que esteve entre nós. Há 40 anos. Direto do túnel do tempo.
Vou postar bem cedo, na hora do café da manhã, como diz o Bernardino Santos, para ficar ainda mais parecido com notícia de jornal.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Benedicto Mello — Augusto Meira, década de 1970. Coleção particular.
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